Xadrez Fácil é um blog que visa a divulgação do livro Xadrez Fácil. Xadrez Fácil é um livro destinado a você que gostaria de aprender a jogar xadrez, mas acha xadrez um jogo muito complicado. Ele possui uma linguagem clara e objetiva (didática), testes que visam a consolidar o conhecimento teórico aprendido, curiosidades sobre o xadrez, frases de jogadores famosos, diversas ilustrações (diagramas) e muito mais! Xadrez Fácil: o modo mais fácil e inteligente de se aprender xadrez!

Saturday, March 15, 2008

Contos de Xadrez


SUMÁRIO


Introdução- Xadrez: “O Jogo dos Reis”

Dr. Tibes

Aprendiz de Campeão

O Presente

O Prodígio

O Capivara

O Livro

O Aficionado

O Enxadrista e o Diabo

O Desafiante

O Viciado

O Melhor de Todos

Mão Pesada

Xadrez às Cegas

“O Jogo”


Primeira orelha do livro: Contos de Xadrez é uma coletânea de contos curiosos e interessantes que abordam o xadrez, nas suas mais diversas facetas, em histórias muito agradáveis de se ler. Essa coletânea é destinada não apenas aos leitores enxadristas, mas a todos aqueles que buscam uma leitura agradável e prazerosa. Divirta-se!


Segunda orelha do livro: Luciano Riélo Ferreira tem 38 anos e é carioca. Estudou no Colégio Pedro II e se formou em Economia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É aficionado do xadrez e adepto do xadrez relâmpago (modalidade do xadrez jogado em tempo inferior a 15 minutos, também conhecido por blitz chess) é também admirador incondicional de Paul C. Morphy a quem considera o melhor jogador de xadrez de todos os tempos. Contos de Xadrez é seu segundo livro (escreveu também Xadrez Fácil- livro destinado àqueles que desejam aprender a jogar xadrez de modo fácil e objetivo) “Quando você escreve, você brinca de Deus, pois tem na ponta de uma caneta ou no dedilhar de algumas teclas a vida e o destino de todos seus personagens.” Luciano Riélo Ferreira

Introdução- Xadrez: “O Jogo dos Reis”


I) Origem do Xadrez

Há muita controvérsia sobre a origem do xadrez. Alguns autores afirmam que ele surgiu na China, outros na Pérsia (atual Irã) e outros autores ainda como Donald M. Liddell e H. J. R. Murray afirmam que o xadrez surgiu na Índia. Por ser mais verossímil concordo com a hipótese levantada por Liddell que é a seguinte: quando Alexandre, o Grande derrotou o exército indiano no ano 326 a.C. Os carros de combate ainda faziam parte do exército indiano, porém devido a derrota para Alexandre logo tornaram-se obsoletos e como o Chaturanga (precursor indiano do xadrez) ainda apresentava entre suas peças o carro de combate, conclui-se que o Chaturanga surgiu no século IV a.C.. (A primeira menção ao xadrez na literatura só surgiu, entretanto, no ano 600 d.C. no romance persa Karnamak.)
O Chaturanga estendeu-se da Índia para a Pérsia (aonde adquiriu o nome de Chatrang), daí atingiu a Arábia (batizado de Shatranj) e desta chegou à Europa difundindo-se posteriormente para todo o mundo. Obs.: Como Portugal e Espanha encontravam-se sob domínio árabe tiveram acesso ao Shatranj que passou a se denominar Ajedrez na Espanha e Xadrez em Portugal.

II)O que é o Xadrez?

O xadrez é um jogo de estratégia disputado por dois jogadores (enxadristas) em um tabuleiro com 64 casas iguais alternadas em claras e escuras. No xadrez não existe o fator sorte dependendo a vitória exclusivamente do raciocínio lógico-analítico de cada jogador. Cada um dos jogadores deve escolher seu exército, de cor (*) branca ou preta, que é composto por 16 peças cada um (duas torres, dois cavalos, dois bispos, uma rainha, um rei e oito peões) para que o jogo possa ter início. Por convenção o exército branco (ou o de cor mais clara) começa o jogo, devendo em seguida jogar o exército negro (o de cor mais escura) e novamente o exército branco, mantendo-se esta alternância (revezamento) de vez até o fim do jogo.
O objetivo do jogo é dar xeque-mate (palavra originária da frase persa “Shah Mat” que significa “o rei está morto”) no exército rival. O jogador que o conseguir ganhou o jogo. Também pode-se vencer o jogo, sem a obrigação dar xeque-mate no adversário, de duas outras formas: 1) Fazendo o adversário abandonar a partida;
2)Quando o tempo do adversário para jogar a partida se esgota;

Pode também ocorrer no xadrez o empate entre os jogadores.
A vitória, não importando a forma como foi obtida, vale 1 ponto, o empate vale 0,5 ponto para cada um dos jogadores e a derrota 0 pontos.
Por cordialidade, o enxadrista vencido deve sempre cumprimentar o enxadrista vencedor.

(*) As peças não precisam, obrigatoriamente, ser da cor preta ou branca. Elas podem ser de outras tonalidades desde que se possa distinguir um exército do outro.

III) Benefícios do Xadrez


O xadrez pode ser jogado por todas as faixas etárias desde crianças até idosos. Seus principais benefícios são:

1-Melhora da memória;
2-Aumento da criatividade;
3-Proporciona aumento na capacidade para aprender qualquer assunto;
4-Sociabilidade (facilidade em se fazer amizades “duradouras”)
5-Melhora na capacidade de se tomar decisões.
6-Proporciona nas crianças e adolescentes melhoria e prazer na aprendizagem de Ciências Exatas (Matemática, Química e Física).
7-Disciplina (as crianças e adolescentes passam a ser mais responsáveis)
8-Superação de limites (incentiva seu praticante a fazer sempre o seu melhor em qualquer situação)
9- É um deleite praticá-lo, além de ser um excelente esporte!


Por fim, só a guisa de curiosidade, saiba que o atual campeão mundial de xadrez pela FIDE (Fédération Internationale des Échecs) (**) é o indiano Viswanathan Anand e que o xadrez é um dos três esportes mais praticados no mundo.

(**) Federação Internacional de Xadrez.




Dr. Tibes


Era mais um dia na vida do Grande Mestre Internacional de Xadrez James Blake que arrumava as malas preparando-se para viajar para Londres onde disputaria mais um torneio internacional.
James Blake é norte-americano e apesar de sua pouca idade, 23 anos, já acumula, em seu cartel, diversos troféus de torneios ganhos nos mais diversos cantos do mundo.
Tudo corria bem e dentro da normalidade até às 23h, quando, então, o telefone da casa de Blake tocou: - Senhor James Blake? Perguntou uma voz rouca e anasalada do outro lado da linha.
Sim, sou eu, o que deseja?
O que desejo? Na verdade sr. Blake essa é uma pergunta que o sr. mesmo deve responder!
Não entendi, senhor...
Doutor, meu caro, Dr. Tibes. E esclarecendo a sua dúvida, digo-lhe apenas que estou com seu irmão Robert e que se não fizer exatamente o que digo, a vida dele valerá menos que um dólar furado!
Isso é algum trote? Se é não tem a mínima graça! Disse balbuciando James.
Não sr. James Blake, isso é apenas o começo de minha vingança! Agora cale-se e ouça!
Desesperado e muito assustado, James falou: - Deixe-me falar com meu irmão, caso contrário vá pro inferno!
Está bem, sr. James Blake, deixarei que fale com seu irmão para ver que não estou brincando. Disse o maléfico Dr. Tibes.
Robert, você está aí?
James, esse cara é louco! Não faça nada...
Satisfeito, sr. James Blake? Perguntou Tibes.
O que quer de mim seu miserável? Dr. Tibes, então, disse a James tudo que queria e em seguida desligou o telefone soltando uma malévola risada.
Como que acordando de um pesadelo James Blake, ligou em seguida para um amigo de infância, Paul Matts, que era delegado de polícia, e lhe disse tudo que acontecera.
Quer dizer que esse tal de Dr. Tibes, que você não tem a mínima idéia de quem seja, exige que você parta imediatamente para um castelo na Transilvânia, sozinho, para salvar seu irmão? Perguntou Matts.
Isso mesmo, respondeu, transtornado, James. Sozinho e sem a polícia ou meu irmão morrerá!
Matts disse a James que contactaria o FBI e que tudo se resolveria a contento, pois eles estavam acostumados a lidar com psicopatas desse tipo.
Após uma noite mal dormida, James Blake foi ao aeroporto e comprou uma passagem de avião voando em seguida para Romênia de acordo com a orientação do maligno Dr. Tibes.
James Blake, antes de se dirigir para o castelo, ligou para seu amigo Paul Matts e seguiu todas suas recomendações.
Tendo se passado exatamente três horas desde sua conversa com Matts, James, finalmente, chegou ao castelo indicado por Tibes. James Blake bateu com a argola de ferro contra a pesada porta de ferro até que um lacaio abriu-a e o conduziu até um vestíbulo onde deveria aguardar seu amo e Blake assim o fez. Após 15 minutos de espera um homem alto e esguio, trajando um terno impecável, porém antigo, disse ao surpreso e desesperado James: - Não vou perder tempo com apresentações! Saiba que seu irmão não está aqui à toa, mas sim pelo fato de ser o principal responsável pela morte de minha querida Francine, mas como não sou um médico cruel e insensível como seu irmão, permitirei que você tenha a oportunidade de o salvar, oportunidade que não tive, de salvar minha tão amada esposa. Sei de sua grande maestria no xadrez e é ela que selará a sorte de seu irmão. Atrás daquela porta há um computador com um programa de xadrez poderosíssimo.Você deverá jogar com o programa e vencê-lo. Somente se o vencer, aparecerá uma senha na tela, que você deverá memorizar e a inserir no painel de uma cela cilíndrica, localizada na sala contígua à sala do computador, onde está preso seu irmão. Saiba que enquanto o senhor disputa a partida a cela cilíndrica vai encher-se gradativamente de água até atingir por completo o tamanho da cela, quando então seu irmão se afogará e morrerá. Lembre-se sr. James Blake que se você perder ou empatar o mecanismo da cela, onde está seu irmão, disparará e acelerará a entrada de água na cela em um nível tal que seu irmão afogar-se-á em poucos segundos, e não haverá nada que o senhor possa fazer, a não ser assistir à morte dele de camarote, pois o vidro dessa cela é feito de um material inquebrável e à prova de balas, e se isso acontecer terei assim minha tão esperada vingança pela morte de minha querida e amada Francine. Só mais um detalhe sr. James Blake, o senhor jogará com as pretas e o tempo total da partida de xadrez corresponde exatamente ao tempo que a cela levará para se encher totalmente de água, ou seja, isto significa que o senhor terá menos de cinco minutos (tempo de duração da partida) para vencer o computador, decorar a senha e a inserir no painel da cela que então se abrirá salvando assim seu querido irmãozinho. O jogo começou sr. James Blake, boa sorte! Rá! Rá! Rá!
James Blake correu em direção à sala onde estava localizado o computador e se sentou rapidamente na cadeira para jogar com o programa que já iniciara a partida. Sabia que somente a vitória salvaria seu irmão e, por isso, precisava ganhar e rápido. Notou que o programa de xadrez era da marca Deep Green, famosa por fabricar programas de xadrez poderosíssimos, e vencedora do último confronto entre programas de xadrez. Por isso James Blake teria que usar toda sua perícia e concentração para vencer o programa, mas antes precisava se acalmar, pois a vida de seu irmão estava em jogo e somente tranqüilo poderia vencer a máquina.
James Blake respirou fundo e fez seu lance que foi respondido pela máquina em poucos segundos. Cada lance de Blake era respondido pelo potente programa de xadrez quase que imediatamente. O tempo ia passando: um minuto, dois minutos, três minutos e finalmente quando o quarto minuto estava chegando, James Blake conseguiu vencer o potente programa de xadrez. Foi uma tarefa hercúlea, Blake teve que usar toda sua maestria e destreza para colocar o programa de xadrez diante de uma posição perdedora em espaço (as peças do programa de xadrez ficaram todas estranguladas e em zugzwang (*)) que permitiu a Blake então alcançar a salvadora vitória. Após o xeque-mate no programa de xadrez, surgiram na tela os seguintes números: 67239846. James Blake memorizou-os rapidamente e faltando poucos segundos para encerrar o prazo (seu irmão já estava com água na altura dos olhos!) correu até a sala seguinte, onde estava localizada a cela, e inseriu a senha no painel. Conforme a promessa do sinistro e vingativo Dr. Tibes, a cela cilíndrica se abriu ao meio e toda a água se escoou para o chão da sala. Robert estava desmaiado, mas vivo!
James Blake salvara seu irmão cujo único crime havia sido o de tentar salvar uma mulher, chamada Francine, que fora desenganada pelos médicos por ter um tumor maligno alojado numa região nobre do cérebro, onde, devido sua localização, a possibilidade de sucesso da operação era de apenas 1%.
A polícia romena, a pedido do FBI, invadiu o castelo, mas tanto o lacaio como o funesto Dr. Tibes já haviam se escafedido.
Nunca mais James Blake ouvira falar do diabólico Dr. Tibes, mas a recordação de como sua mestria no xadrez serviu para salvar a vida de seu estimado irmão ficará para sempre viva em sua memória até o último momento de sua vida.

FIM

(*) Zugzwang- é uma situação no xadrez em que a obrigação de jogar, longe de ser uma vantagem, é uma grande desvantagem, pois pode acarretar perda de material (de peças), desvantagem posicional ou mesmo a própria derrota.





Aprendiz de Campeão

O ano é 2021, o local uma prisão na Rússia. Rayan acabava de ser levado para seu novo “lar”. Pensava que conseguiria mudar de vida rapidamente do modo mais fácil: traficando heroína. Seus planos porém deram errado, muito errado e ali estava ele em seu novo “lar” com seu mundo e seus sonhos caídos todos a seus pés. Não estava sozinho, ao chegar deparou-se com seu companheiro de cela que olhava fixamente e despreocupadamente para um tabuleiro de xadrez. Rayan perscrutou todo o interior da cela. O que viu achou normal: duas camas tipo beliches, diversos livros em cima de uma cadeira e muitos outros empilhados no chão, a mesa na qual descansava o tabuleiro, a cadeira na qual seu companheiro estava sentado e mais nada que merecesse ser mencionado. Rayan reparou que alguns livros eram em inglês, mas o grosso deles era num idioma que ele não entendia, que pensou ser o russo. Rayan não tinha a mínima idéia do motivo pelo qual seu companheiro de cela estava preso. Por absoluta falta do que fazer tentou conversar com ele. Rayan, no seu idioma que era o inglês, apresentou-se e lhe perguntou o nome. Ouviu dele uma única palavra: Kaspalov. Tentou conversar mais, mas o homem manteve-se impassível conservando seu olhar no tabuleiro e nas peças que repousavam nele. E assim Rayan passou seu primeiro dia na prisão.
Nos seis dias que se seguiram Rayan conseguiu vencer a resistência inicial de Kaspalov e já conversavam com um pouco mais de intimidade. Rayan contou-lhe que era norte-americano, criado em Nova York, que nunca tivera feito antes uma viagem para fora do país e que entrara nessa “fria” por causa de um rabo de saia chamado Ivanka. Rayan também disse que não costumava ler revistas, jornais ou mesmo assistir ao noticiário, preferia curtir a vida nas noitadas com belas mulheres (adorava o jogo da conquista, da sedução, de “caçar” suas vítimas tal qual num jogo de gato e rato) e foi numa destas muitas noitadas que conheceu Ivanka, uma bela loira de origem russa, que o levou direto para o xilindró por no mínimo 15 anos. Kaspalov, por sua vez, disse que estava preso pelo fato de ser o principal dissidente político do governo do ditador- presidente Pulim e que enquanto ele se mantivesse no poder Kaspalov permaneceria preso, disse também que fora campeão mundial de xadrez e que graças ao xadrez conhecera o mundo e as pessoas e graças a ele devia tudo o que era. Após ouvir de Kaspalov que este fora campeão mundial de xadrez os olhos de Rayan brilharam. Ele perguntou a Kaspalov se ele o aceitaria como aprendiz. Rayan disse a Kaspalov que ele não se arrependeria se lhe ensinasse toda sua técnica, já que a seu favor estavam sua memória fotográfica e sua facilidade em aprender qualquer coisa por mais complexa que ela fosse. Kaspalov pensou um pouco e aceitou o desafio, afinal eles tinham todo o tempo do mundo.
O treinamento começou. Nos primeiro dia Kaspalov testou o nível enxadrístico de Rayan com diversas perguntas gerais sobre o xadrez. Kaspalov notou que Rayan sabia o básico, ou seja, sabia o nome das peças, seus movimentos, como elas capturavam, como dar xeque e conhecia o objetivo principal do jogo: o xeque-mate. Porém Rayan não tinha a malícia de um jogador avançado quanto mais a de um Grande Mestre. Poder-se-ia dizer que Rayan era naquele momento apenas um jogador mediano. Kaspalov viu que teria trabalho, mas ele adorava desafios! Ainda no primeiro dia Kaspalov disse a Rayan as qualidades necessárias para se tornar um campeão: atenção, criatividade, ousadia, determinação e muito, mas muito trabalho, pois o único lugar onde o sucesso vem antes do trabalho é no dicionário. Por fim, Kaspalov entregou a Rayan alguns livros de xadrez em inglês e uma lista com as tarefas diárias que Rayan deveria praticar. Rayan olhou a lista e notou que ela trazia sempre três tarefas diárias. Eis algumas delas: treinamento de aberturas, de finais, de xeques-mate, análise de jogos de enxadristas famosos, estudo de combinações etc. Rayan viu que teria muito trabalho, mas também alegrava-se, pois já se antevia no futuro como Grande Mestre e Campeão tal qual seu mestre.
Kaspalov à medida que o treinamento avançava dava diversos conselhos (*) à Rayan, procurando sempre melhorar o jogo de seu pupilo e prepará-lo para enfrentar qualquer tipo de dificuldade que surgisse em seu caminho. Rayan prestava a máxima atenção nos conselhos de seu mentor esperando apenas o momento propício de os colocar em prática.
Os dias foram passando, os meses também e ao final de oito meses de treinamento, Kaspalov desafiou Rayan para uma partida. Kaspalov jogou esta partida sem a dama e com as negras. Kaspalov não teve “pena” de
Rayan e deu-lhe em pouco tempo um xeque-mate impiedoso, semelhante ao de Morphy no conde Isouard e no duque de Brunswick, ou seja, com a torre e o bispo. Rayan não ficou triste com a derrota, afinal jogara com um campeão. Kaspalov analisou a partida com Rayan e mostrou-lhe seus erros e acertos. Kaspalov deu-lhe mais alguns livros de xadrez e disse-lhe que agora jogaria com Rayan uma vez por mês e que as análises de cada partida seriam por sua conta, já que só se pode fazer um omelete quebrando os ovos e só se aprende de verdade quando a pessoa aprende por si mesma. Iniciava-se a segunda fase do treinamento.
O tempo passara rapidamente (dias, semanas, meses e anos) e Rayan entregara-se de corpo e alma ao treinamento. A melhora em sua técnica era evidente. Já era capaz de analisar posições complexas com desenvoltura, calculava rapidamente diversas variantes que no início de seu treinamento lhe seriam impossíveis de visualizar, enfim o progresso de Rayan era um fato. Nesse ínterim Kaspalov foi diminuindo progressivamente o “handicap” dado a Rayan: de uma dama para uma torre, de uma torre para um cavalo, de um cavalo para um peão e por fim apenas a vantagem da saída. E finalmente chegou o momento em que Kaspalov já não conseguia mais ganhar todas as partidas de Rayan dando-lhe vantagem. Rayan já jogava de igual para igual com o campeão. Kaspalov comunicou a Rayan que seu treinamento ia agora para fase final, a fase do polimento. Nesta fase Kaspalov limitaria-se a jogar com Rayan já que Rayan já possía a técnica apuradíssima, devendo apenas conservar o hábito da análise para não perder a prática. Só faltava a Rayan o ritmo de jogo que, agora, passados 4 anos e meio do início de seu treinamento Kaspalov se encarregaria de o dar.
Uma feliz coincidência chegou aos ouvidos de Rayan e de seu mentor: o diretor do presídio comunicou a seus detentos que haveria um torneio de xadrez entre eles que classificaria o vencedor para jogar um outro torneio de xadrez só que agora com os presidiários vencedores dos outros presídios russos. O prêmio para o vencedor deste torneio seria o indulto total de sua pena ou seja: a liberdade! Outra notícia alvissareira desta vez para Kaspalov era que o governo despótico de Pulim estava enfrentando forte resistência da população e de diversos setores da sociedade inclusive das forças armadas e sua queda era questão de tempo, de pouco tempo. Diante desta notícia Rayan e Kaspalov abraçaram-se radiantes. Kaspalov preparava, agora, seu aprendiz para seu batismo de fogo: as duas batalhas (os dois torneios) que se vencidas o farão um homem livre novamente!
E finalmente chegou o dia do início do primeiro torneio. Rayan estava ansioso, porém confiante já que se preparara adequadamente. Havia, contando Rayan, quarenta competidores. Eles foram divididos em 4 chaves de 10 jogadores. Os vencedores de cada chave enfrentar-se-iam num quadrangular final.
Rayan foi vencendo um a um seus oponentes e classificou-se sem sustos para o quadrangular final. O quadrangular final previa confrontos de todos contra todos devendo cada dupla de jogadores alternar as cores entre si ou seja o quadrangular dar-se-ia no sistema duplo round robin.
Rayan chegou ao jogo final precisando vencer, já que seu adversário, Molotov, tinha meio ponto de vantagem em relação a ele. Jogando com as brancas contra Molotov Rayan apenas empatara. Molotov era um jogador ardiloso que usava sacrifícios e armadilhas a torto e direito tentando confundir seus adversários. Rayan sabia disso, pois já jogara com Molotov, e prometeu a Kaspalov que seria cuidadoso com “as pegadinhas” de seu rival.
O jogo final começou. No início transcorreu bastante equilibrado, porém o meio-jogo era ligeiramente favorável a Rayan (**) , Molotov, com apuros de tempo jogou: Tf1xf7 , Rayan notando que seu adversário deixara desguarnecida sua defesa jogou: Tc1+. Molotov não titubeou e jogou logo em seguida: Tf1+ ! Que atacava o rei de Rayan e ao mesmo tempo defendia seu rei. Um jogador distraído ou mediano pensaria que com esse lance a partida estava decidida e que só lhe restaria abandoná-la, mas Rayan não era distraído e muito menos mediano e jogou: Dxd5!! Molotov era obrigado a capturar a torre de Rayan para não levar mate e enquanto isso Rayan capturaria a outra torre ficando com ampla vantagem material. Molotov viu que estava perdido e numa explosão de cólera arremessou seu rei junto com todas as peças restantes do tabuleiro no chão. Kaspalov sorriu com o ato de desespero de Molotov, Rayan também. A primeira batalha fora vencida, faltava apenas Rayan vencer a segunda para conseguir sua tão almejada liberdade.
Por ser o maior presídio russo, o presídio onde estavam confinados Kaspalov e seu aprendiz foi o escolhido pra sediar o torneio entre presídios.
O torneio começaria logo, mais precisamente em uma semana. Devido ao pouco tempo até o início do torneio Kaspalov aconselhou Rayan a apenas estudar e analisar as partidas do torneio ganho por ele e a descansar no restante do tempo para chegar tinindo ao torneio decisivo. Kaspalov tinha plena confiança em Rayan, afinal fora ele que ensinara a Rayan tudo que este sabia e tivera bastante tempo para preparar seu pupilo, uma vantagem que Kaspalov acreditava que os rivais de Rayan não possuíam.
Rayan soube que o torneio teria 32 participantes (contando com ele) e que eles seriam divididos em 4 chaves de 8 participantes devendo os vencedores de cada chave enfrentarem-se num quadrangular final no sistema duplo round robin (todos contra todos com alternância de cores entre os jogadores) que apontaria então o campeão.
Finalmente o torneio começou. Como no torneio anterior Rayan não teve dificuldade para classificar-se como vencedor de sua chave. Rayan estreou o quadrangular final jogando com as negras contra Milikov. Conseguiu apenas o empate. Jogou depois com as brancas contra Telenko e com as negras contra Shevenk, vencendo ambas as partidas. O problema era que Milikov, também havia vencido seus rivais e, portanto, ao final da primeira rodada, ambos estavam empatados em primeiro lugar.
Começava a segunda rodada do torneio. Rayan começou jogando contra Shevenk, vencendo com uma certa facilidade. Seu segundo jogo foi contra Telenko e neste jogo Rayan, que jogou com as negras, encontrou dificuldade conseguindo apenas o empate. Milikov, ao contrário de Rayan, venceu seus dois jogos e chegava à final contra Rayan com a vantagem do empate. Rayan, porém, acreditava firmemente que venceria já que jogaria com as brancas e com elas, neste torneio, ele sempre confirmou sua vitória. Um pouco antes de começar a partida decisiva Kaspalov aproximou-se de Rayan e sussurrou em seu ouvido: - Vença! Rayan sorriu e abraçou Kaspalov. Rayan foi chamado pelo árbitro. A partida derradeira começou.
Milikov que estava invicto, assim como Rayan, era muito, muito manhoso. Usava os xeques e ataques descobertos e também o xeque duplo como ninguém, usava também desvios e zwischenzugs à torto e direito, oferecia presentes de grego a seus adversários que os levavam à derrota, usava e abusava das cravadas (pregaduras) e dos skewers, por fim fazia sacrifícios que Tal assinaria como seus, enfim era um jogador completo. Rayan não ficava atrás, já que fora treinado por um campeão, e apesar de todo “know-how” de seu adversário não o temia, mas o respeitava já que ele estava invicto e jogava com a vantagem do empate.
A partida transcorria equilibrada, com uma ligeira vantagem para Rayan. Porém no meio jogo a partida atingiu a seguinte posição (***) Rayan percebeu que se não fosse enérgico Milikov dar-lhe-ia mate em dois lances. Milikov sabia disso e percebendo a perturbação de seu adversário encarou-o fixamente com um olhar debochado e irônico. Um jogador medíocre ou pusilânime teria abandonado, mas Rayan não era nem um nem outro e fora treinado por um campeão. Rayan não desistiria facilmente e pensou, pensou até que lhe veio toda a solução na sua mente. Rayan então de pronto jogou: Dxe4!
Milikov não se abalou e jogou: Dh3 . Rayan que já tinha analisado a posição jogou: Dxf3!! Milikov não acreditava no que via, sua vitória escorria-lhe pelos dedos já que se capturasse a dama de Rayan este jogaria: Te8+ ! E após Milikov jogar: Tf8 (sua última defesa) Rayan lhe capturaria a torre e dar-lhe-ia xeque-mate. Muito irritado Milikov derrubou seu rei no tabuleiro proferindo diversos impropérios dos quais os únicos publicáveis eram: - Sacanagem, sacanagem mesmo.
Kaspalov, com os olhos cheios de lágrimas, aplaudiu Rayan de pé. Estava orgulhoso de seu pupilo. Seu trabalho não fora em vão.
Rayan era enfim um homem livre e não mais um aprendiz, mas sim um verdadeiro campeão!


FIM


(*) Alguns dos conselhos dados por Kaspalov à Rayan:

1)Analise sempre com o máximo cuidado cada jogada de seu adversário. Não jogue por impulso!
2)Talento sem Treinamento= Desperdício, mas Talento + Treinamento= Sucesso!
3)Nunca deixe a retaguarda desguarnecida;
4)Mantenha sempre a iniciativa!
5)Só ataque nos flancos quando seu meio estiver consolidado;
6)Não tenha receio de fazer sacrifícios, mas não os faça em vão!
7)Antes de fazer seu lance olhe para todas as peças no tabuleiro. Às vezes por não olhar todo o tabuleiro você perde a oportunidade de decidir o jogo!
8)Provoque o máximo de debilidades no jogo do adversário (peões dobrados, atrasados, isolados etc.) e evite que ele faça o mesmo com você;
9)Às vezes é preferível perder uma peça do que tentar mantê-la e perder o jogo;
10) Uma vantagem material nem sempre é decisiva;
11) O tempo pode ser seu aliado, desde que você saiba usá-lo!
12) Acredite sempre!





(**) posição 1: 5tr1/ 1T3T1p/ p2p2p1/ 3Bb3/ 4P1D1/ 3d3P/ P5P1/ 2t4R


(***) posição 2: 5t1r/ p1p3pp/ 1p6/ 3D4/ 2P1p1d1/ 5pP1/ P4P1P/ 2T1T1R1



Obs.: As letras maiúsculas representam as peças brancas e as minúsculas as peças negras. Os números entre as letras representam o número de casas vazias consecutivas. (Veja Notação Forsyth) Leia sempre da esquerda para a direita. As barras servem apenas para separar as fileiras. A primeira fileira que aparece na representação na verdade é a oitava ou seja a ordem em que as peças estão representadas é de cima do tabuleiro para baixo ou da oitava à primeira fileira.
Ex.: Na posição 1 a oitava fileira é representada por: 5tr1.(onde t=torre negra e r=rei negro)
Ex.2: Na posição 1 a primeira fileira é representada por: 2t4R. (onde t=torre negra e R= rei branco)


O Presente

Al Massum era um califa muito mau e irascível, porém muito inteligente e de palavra, que no século VIII governava a cidade de Bagdá. Sua filha Kila, ao contrário do pai, era uma pessoa boníssima e como se isso não bastasse era lindíssima e também muito inteligente. Como Kila já tinha atingido a idade de 21 anos, o califa decidiu que já era hora dela se casar e decretou que quem lhe trouxesse um presente que lhe agradasse plenamente teria em troca a mão de sua filha.
O desafio foi feito a todos: ricos ou pobres, príncipes ou plebeus, inteligentes ou néscios, fortes ou fracos, lindos ou feios enfim o que realmente importava era o presente e não quem o daria.
Passaram-se 30 dias e apenas três pretendentes apareceram para disputar a mão de Kila. (Não que não houvesse outros interessados em desposar a bela filha do califa, o problema era ter coragem para fazê-lo, já que todos temiam a ira e a maldade do futuro sogro) Após as saudações habituais foram feitas as devidas apresentações. O primeiro pretendente, príncipe Al Hajid foi anunciado e dirigindo-se ao califa disse: - Nobre califa, ofereço-vos em troca de sua filha todo o tesouro que esta enorme arca é capaz de comportar. E mandou seus dois escravos abrirem a enorme arca deixando à mostra para os convidados e para o califa as diversas riquezas e belezas que ela continha: diamantes, esmeraldas, safiras, rubis, jóias enfim tudo em tamanho imenso e em grande quantidade. O califa ao invés de sorrir de felicidade com toda aquela riqueza fez uma caratonha e muito mal-humorado retrucou: - O que me ofereces já o tenho em quantidade, volta para seu reinozinho e leva essa arca contigo, pois minha filha vale mais do que isso! E Al Hajid retirou-se muito envergonhado e humilhado.
O segundo pretendente foi então anunciado: era outro príncipe de nome Al Kalil, mais belo que o primeiro, que era gordo e baixo, porém já de meia-idade. A princesa acompanhava a tudo atentamente, pois a escolha de seu pai selaria seu destino.
Al Kalil dirigiu-se ao califa e falou: - Majestade, aqui está um pássaro raríssimo e belíssimo que irá alegrar o despertar de Vossa Majestade com seu lindo canto durante muitos e muitos anos.
Furioso o califa se manifestou: És um tolo, então não sabe que este pássaro me alegrará por não mais que uma década e após esta morrerá me deixando apenas a triste recordação de seu canto? Seu presente na verdade me trará desgosto e não alegria, leve, portanto, este pássaro com você, pois o que me trazes é uma alegria efêmera que não vale a mão de minha filha! E humilhado e triste foi-se embora o segundo pretendente. Só restava agora o terceiro pretendente, que não era um príncipe, mas um homem misterioso vindo do estrangeiro que muitos diziam ser um sábio. Era o mais belo e formoso dos três pretendentes e sua beleza não passara despercebida aos olhos da princesa que orava para Alá com fervor para que ele fosse o escolhido.
Finalmente Al Hassam foi anunciado e dirigindo-se ao califa disse: - Califa, o que vos trago é um jogo muito curioso e instrutivo chamado xadrez, que o alegrará até o último dia de sua vida e em todos os momentos em que Vossa Majestade dele fizer uso. Al Massum ficou curioso com o jogo e pediu que Al Hassam falasse mais sobre o mesmo. Al Hassam então continuou: - Neste jogo não há sorte ou interferência do destino, devendo ambos os jogadores usarem o raciocínio de suas mentes para vencer a batalha. Observe califa que há casas claras e escuras alternadamente no tabuleiro que representam respectivamente os dias e as noites. Note que há dois exércitos um negro e outro branco que representam respectivamente a eterna luta entre as trevas (o mal) e a luz (o bem). Observe também que as brancas começam o jogo, porque a luz precede as trevas. Veja que cada exército possui oito peões (a infantaria) que avançam intrépidos à frente das demais peças em direção ao território inimigo e saiba que o rei é a peça mais importante do jogo, pois se levar xeque-mate o jogo acaba imediatamente com a vitória do exército que atingiu esse objetivo. Olhe as outras peças: os bispos representam a religião que é tão importante para um reino como para um indivíduo; a rainha é a peça com maior mobilidade no tabuleiro sendo por isso muito valiosa e ajuda o rei na difícil tarefa de vencer o exército rival, por fim os cavalos representam a cavalaria e as torres as armas pesadas. (*)
Fascinado com a explicação de Al Hassam, Al Massum pediu-lhe que lhe ensinasse a jogar, o que foi feito. O público nem piscava diante das explicações de Al Hassam acerca das regras do jogo.
Depois de algum tempo o califa jogava animadas partidas com sua corte, vencendo todas, pois ninguém tinha coragem de vencê-lo por medo de ter que enfrentar sua ira.
Finalmente após tanto jogar Al Massum determinou que Al Hassam era o vencedor e a ele cabia por direito a mão de sua filha.
Kila chorou de alegria ao ouvir as palavras de seu pai que apesar de mau era conhecido como um homem de palavra e que não voltava atrás quando a dava.
Al Hassam pediu a palavra ao futuro sogro e disse para quem pudesse ouvir: - Nobre califa, só vos digo mais uma última coisa sobre o jogo que é o seguinte: saiba que quando o jogo acaba o peão e o rei vão para mesma caixa e assim também se dá no tabuleiro da vida, onde ninguém é melhor ou pior do que ninguém, mas sim todos filhos de Alá. Todos aplaudiram Al Hassam de pé, inclusive o califa que entendendo a nobreza e o significado das palavras proferidas por Al Hassam, a partir daquele momento transformou-se num rei mais justo e mais sábio para seu povo.

FIM


(*) Por uma questão de praticidade, os nomes das peças de xadrez que aparecem no texto são seus nomes definitivos e não os nomes que elas tinham na época citada no texto.




O Prodígio

Bernardo Santiago era filho de pai e mãe abastados e por isso não precisava se preocupar com dinheiro. A única exigência que seus pais fizeram era que ele se formasse em algum curso superior.
E essa exigência ele cumpriu: formou-se com ótimas notas em Economia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Porém nunca se animou em exercer a profissão, já que sua verdadeira paixão era o xadrez. Por isso tornou-se professor de xadrez e exercia sua verdadeira vocação no Clube de Xadrez Rio de janeiro em Ipanema e também numa ONG, na favela da Rocinha, onde prestava serviços comunitários dando aulas de xadrez gratuitas para crianças carentes desta comunidade.
Em suas aulas na Rocinha, notara que um de seus alunos se destacava em relação aos demais. O nome dele era Renato Silva. Renato Silva era morador da favela da Rocinha e era um menino muito esperto e amigo de todos da comunidade. Por possuir estas qualidades era muito disputado pelos traficantes que não cansavam de lhe oferecer o emprego de “avião” do tráfico em troca de muitas “verdinhas”, convite que Renato, graças aos ensinamentos de sua mãe e de sua avó, fazia questão de recusar, porém sempre se lembrando de agradecer ao traficante pela “oferta de trabalho”. Fazia isso pois na comunidade era importante se relacionar com todos, principalmente com os traficantes que eram os verdadeiros “donos” do morro.
Bernardo Santiago teve certeza que seu aluno Renato Silva era um prodígio quando na última aula do curso (que tinha a duração de seis meses) Renato desafiou-lhe para uma partida. Bernardo Santiago apesar de saber que Renato era seu melhor aluno, aluno daqueles de perguntar tudo e de fazer perguntas desconcertantes ao mestre e, além disso, capaz de ensinar a lição a seus colegas mais velhos que tinham vergonha de perguntar ao professor, achou que mesmo dando dois cavalos e a saída de vantagem o venceria facilmente. Porém Renato, para surpresa de seu professor, venceu-o! Atônito com a derrota para seu aluno que tinha apenas 5 anos de idade, Bernardo Santiago resolveu dessa vez dar-lhe apenas a saída de vantagem. E para surpresa do Professor seu pequeno aluno venceu-o novamente! Não satisfeito Bernardo Santiago desafiou novamente Renato Silva, mas desta vez jogaria com as brancas contra o pequeno infante. Adivinhe quem ganhou leitor? Sim, ele, o infante terrível, Renato Silva. Admirado e ao mesmo tempo feliz, Bernardo Santiago fez questão de perguntar a seu jovem aluno se ele o aceitaria como treinador, em caso afirmativo Bernardo Santiago dar-lhe-ia o melhor treinamento possível para que Renato Silva disputasse com reais chances de vitória as diversas competições nacionais e internacionais de xadrez, mas para isso ele teria que morar em seu apartamento, pois era preciso dedicação em tempo integral. Sem pestanejar Renato Silva respondeu que sim, agora faltava só a concordância dos pais do garoto, o que Bernardo Santiago achava que não seria difícil de conseguir, já que Renato moraria não somente com ele, mas também com seu pai e com sua mãe.
Bernardo Santiago pediu a Renato que o levasse em casa para que ele pudesse falar a seus pais sobre seu projeto. Como a campainha estava com defeito o professor de xadrez bateu palmas para se fazer anunciar. De repente uma senhora de meia-idade aparentando uns 45 anos de idade abriu a porta e após feitas as apresentações deixou Bernardo Santiago entrar junto com seu neto.
Dona Lucy pediu que o professor de xadrez de seu neto se sentasse no sofá e ele assim o fez. Dona Lucy perguntou se ele aceitava um copo de água e ele concordou, nesse ínterim Bernardo Santiago olhou ao seu redor e viu que a sala do barraco possuía poucos móveis: uma pequena estante, uma televisão de 14 polegadas, uma mesa, quatro cadeiras, o sofá de dois lugares onde ele estava sentado e mais nada! Porém o barraco apesar de sua simplicidade era limpo, aliás limpíssimo, já que dona Lucy tinha “mania” de limpeza e vivia dizendo que não é preciso ser rico para ser limpo e nisso ela tinha razão.
Bernardo Santiago perguntou a dona Lucy pelos pais de Renato, pois tinha uma proposta a lhes fazer que garantiria a Renato Silva um futuro brilhante e próspero. Dona Lucy disse ao professor de xadrez que Renato era órfão de pai e que sua filha, mãe dele, chegaria tarde, pois trabalhava como garçonete numa lanchonete e que então ele deveria dizer-lhe qual era a proposta que ela se encarregaria de a transmitir a sua filha. Bernardo Santiago disse-lhe tudo sobre seu projeto, inclusive que estava disposto a deixar seu emprego de professor para se dedicar integralmente neste empreendimento. Dona Lucy ouviu a tudo interessada e pediu-lhe que deixasse seu telefone que ela ligaria com a resposta. E assim, no dia seguinte, exatamente às 14:00h dona Lucy comunicou a Bernardo Santiago que a resposta era... sim! Júlia, a mãe de Renato, mostrou-se reticente no início, mas quando dona Lucy lhe disse que Renato não moraria apenas com seu professor de xadrez, mas também com os pais dele e que a mãe do professor de xadrez, que era pedagoga, ficaria incumbida da educação escolar de Renato, ela acabou concordando pedindo a Deus que tudo desse certo.
Na semana seguinte, após transferir-se para casa dos pais de seu professor, o treinamento teve início. Antes de começar, porém, Bernardo Santiago disse o seguinte a seu novo e futuroso pupilo:
Renato, vou contar-lhe uma história cuja mensagem nela contida mudará sua vida para sempre:
ei-la: Após Júlio César desembarcar com suas legiões na Britânia (atual Inglaterra) ele tinha apenas duas opções:
conquistá-la ou voltar para casa derrotado. Ciente disso ele ordenou a alguns de seus soldados que queimassem todas as embarcações nas quais ele e seu exército haviam chegado. Deste modo a ele só restou a opção de seguir em frente conquistando cada palmo de território inimigo, ou morrer tentando, já que seus soldados não tinham mais a possibilidade da retirada. (As legiões de Júlio César estavam posicionadas com o mar na sua retaguarda e com as montanhas a sua frente, onde estavam localizados os inimigos)
E ele seguiu em frente! A mensagem, meu jovem, é a seguinte: quando você quiser algo, mas de todo coração queime (vença) todos seus medos, obstáculos e frustrações e persiga, tal qual Júlio César, seu objetivo, pois se ele existe, ainda que apenas no seu pensamento, ele pode ser alcançado, só depende de você!
Renato Silva abraçou seu professor e chorou. Após alguns minutos e um copo de água com açúcar, o treinamento finalmente teve início.
Bernardo Santiago começou o treinamento dando a seu aluno, que era “todo ouvidos”, os seguintes conselhos:
Renato, nunca tenha vergonha de me perguntar qualquer coisa, pois como dizia o grande sábio Aristóteles: “a dúvida é o princípio da sabedoria.”
Saiba que espero de você muita dedicação e empenho, pois o trabalho, ou seja o treinamento é uma árvore feia, mas de frutos doces.
Quando você estiver diante de seus adversários seja sempre como o lobo diante das ovelhas: não os tema! Seja autoconfiante, mas nunca presunçoso.
Por fim “se você cair sete vezes, levante-se oito!” (provérbio japonês). Bernardo Santiago então pegou uma folha de cartolina e escreveu nela uma escala de tarefas que Renato Silva deveria seguir diariamente. Todo dia após o café da manhã, Bernardo Santiago apresentava composições de xadrez (problemas de xadrez) para Renato treinar combinações que visavam ao mate, tendo sempre o cuidado de cronometrar o tempo que ele levava para solucioná-las. À tarde, após o almoço, Bernardo Santiago treinava seu pupilo nas mais diversas facetas do xadrez: aberturas, meio-jogo, finais, estratégias, táticas e por fim nos diversos tipos de xeques-mate. Era um trabalho intensivo e árduo, mas o garoto adorava e sempre terminava seu treinamento com um sorriso.
Os dias, semanas, meses e anos foram passando e Renato melhorara seu xadrez a olhos vistos até o ponto em que Bernardo Santiago achou que finalmente seu pupilo já estava pronto para enfrentar uma competição. O Professor sabia do potencial de seu discípulo e do que ele era capaz e por isso sem medo do fracasso inscreveu-o num torneio para jovens de até 15 anos. É bom dizer que Renato Silva tinha apenas 8 anos de idade!
Renato Silva ganhou uma partida após a outra e venceu o torneio de forma incontestável para alegria de seu treinador. Sua mãe Júlia e sua avó dona Lucy choraram de alegria quando ele subiu no pódio para receber a medalha e o troféu de campeão. Elas não sabiam nada de xadrez, mas sabiam que Renato Silva tinha futuro neste esporte e nisso elas estavam certas.
O rating estimado de Renato Silva após o torneio era acima de 1700 e ele ainda tinha muito a aprender e desenvolver. Renato Silva, um menino favelado e pobre, que pelo meio em que vivia tinha tudo para se transformar numa triste estatística de mortos no mundo cão do crime, era agora um campeão, um campeão da vida!

FIM





O Capivara (*)

Seu nome era Vanderley Ratto Royal, mas era mais conhecido por seus amigos como Vandeco.Vanderley era gay e orgulhava-se de sua opção sexual, ia a todas as paradas gays, onde quer que elas fossem, e tinha muitos amigos em Campinas e em São Francisco nos EUA. Vandeco era gaúcho, mais precisamente de Pelotas, e tinha orgulho de seus sobrenomes tanto o de sua mãe (Ratto) como o de seu pai (Royal). Irritava-se profundamente quando insinuavam que seu sobrenome materno era o mesmo que o usado para designar um roedor, muito asqueroso por sinal, além de ser também sinônimo de gente inescrupulosa, sem caráter. Quando isso acontecia Vandeco descia literalmente do salto e dizia aos berros para quem quisesse ouvir: - Ratto sim, mas com dois tês!! Ratto sim, mas com muito orgulho, dizia Vandeco, pois esse fora o sobrenome que sua querida mãe Geni lhe deixara como herança, além de uma coleção de discos de vinil de Chico Buarque que Vandeco sempre ouvia para se lembrar de sua estimada progenitora.
Vandeco adorava ir com seus amigos a boates e discotecas. Pedia sempre que possível para o Dj tocar sua música preferida: Dancing Queen do grupo ABBA. Qaundo ouvia essa música transformava-se, deixava de ser o tímido cabeleireiro do salão Barbie´s na rua General Neto 24, e virava “a rainha da pista.” Soltava literalmente a franga, liberava geral e dançava na pista, para “toda sua platéia”, freneticamente, ao som do ritmo da música, balançando ritmadamente os quadris, braços e cabeça sem parar um só instante. Era uma verdadeira rainha!
Vandeco havia acabado de aprender xadrez com seu melhor amigo, Lenny, e por influência dele inscreveu-se no site de xadrez IXB, ou Internet Xadrez do Brasil. Mediante um pagamento módico, Vandeco poderia jogar xadrez e fazer amigos, muito amigos.
Foi justamente no seu dia de folga, num domingo, que Vandeco debutou no IXB. Seu nick era Royal, sobrenome de seu pai e muito famoso no Rio Grande do Sul, especialmente em Pelotas que é onde há a maior concentração desse sobrenome no Brasil. Escolheu esse apelido não apenas por ser seu sobrenome, mas também por ser um nome forte, pois Royal é uma palavra inglesa que em português significa: real, régio, majestoso, ou seja, Royal era um apelido muito nobre e por esse motivo muito apreciado por Vandeco.
Royal fez então sua primeira saudação aos enxadristas do IXB: - Salve o arco-íris, salve a harmonia da mente e da natureza!
Alguns jogadores responderam a “saudação” de Royal com um lacônico boa tarde, outros se mostraram indiferentes e uns poucos ficaram perplexos com a saudação “tão alegre” de Royal.
Queenly, porém saudou Royal de modo esfuziante, pois Queenly na verdade era Lenny, o melhor amigo de Vandeco ou Royal: - Salve Vandeco, seja bem-vindo!
Royal agradeceu a saudação de seu amigo, botou em dia a semana no salão Barbie's e após despedir-se de Lenny, arriscou-se a jogar uma partida.
Desejou boa sorte a seu adversário e o jogo começou. Royal cometeu um erro na abertura e pagou por ele: tomou o mate do Pastor. Ficou arrasado: - Onde é que eu errei? Por que eu perdi? Perguntas que ficaram sem respostas.
Jogou outras cinco partidas, mas sem sucesso: perdeu todas! Decidiu então que não perderia mais, pelo menos não todas as partidas!
No dia seguinte após o seu trabalho no salão, foi à livraria e comprou diversos livros sobre xadrez para iniciantes.
Passaram-se vários meses desde a sua estréia no site e Royal melhorava a olhos vistos. Já conseguia ganhar algumas partidas, mas como conseqüência de tantas derrotas anteriores seu rating ainda era baixo: 1350.
Exatamente num domingo de setembro de 2005, Royal aceitou o desafio de Vetter para jogar uma partida de 5 minutos.
Royal se esforçou muito, jogou bem até, mas não teve jeito acabou perdendo. Vetter também era gaúcho, mas muito arrogante e metido a machão e, ao invés de cumprimentar Royal pelo jogo, disse o seguinte: - Você é muito ruim seu capivara babaca, é melhor procurar outro jogo pra jogar porque xadrez não é a sua praia! Royal diante das palavras ríspidas e insultuosas de Vetter ficou fulo da vida e disse: - Você é um prepotente, nem parece que é do Rio Grande do Sul, pois não tem a mínima educação de um gaúcho! Vetter furibundo replicou: - Cala a boca seu veadinho, vai aprender a jogar pra não dar vexame! Royal, apoplético, respondeu: - Sou veadinho sim, seu preconceituoso, mas não sou pobre de espírito como você e quer saber? Pra mim você não passa de uma bicha enrustida! E desconectou do site do IXB.
Depois desse aborrecimento Royal jurou que só voltaria a jogar neste site quando deixasse de ser capivara (jogador fraco) e dominasse bem o jogo e assim foi.
Hoje em dia Royal não é mais um capivara, mas um jogador de respeito. Seu rating no IXB é 1860. E o Vetter? O Vetter continua maltratando os capivaras, só que com um rating pouco acima dos deles (1560) e muito abaixo do ex-capivara Royal.
O que Vetter não aprendeu ainda é que para se ter sucesso em qualquer área da vida é preciso ter humildade e isso só a vida há de lhe ensinar.

(*) Capivara é a palavra usada no xadrez para designar os jogadores fracos ou os iniciantes.

FIM




O Livro

Dezembro de 2000. O século 21 estava próximo. Alexander e o resto do mundo veriam-se em breve envolvidos pelos braços do futuro que tinha no avanço tecnológico seu principal representante.
Alexander que era desembargador federal tivera dois baques de uma só vez: o primeiro foi sua aposentadoria compulsória por ter completado 70 anos de idade e o segundo fora a separação definitiva de sua companheira Paula depois de 30 anos de um casamento aparentemente feliz.
Com a aposentadoria e a separação de sua esposa começava uma nova etapa na vida de Alexander. Agora ele teria mais tempo para gastar com suas vontades, tempo que antes era dedicado ao trabalho e à sua família: seu filho Vágner que agora está residindo nos EUA e sua ex-esposa Paula. O problema era que Alexander não sabia muito bem como gastar todo esse tempo extra e tinha medo que ele ao invés de lhe proporcionar prazer trouxesse-lhe na verdade o temido tédio.
Passada uma semana de monotonia gastando o tempo adicional com atividades banais como assistir à tv ou ler revistas e jornais, Alexander sentia necessidade de usar seu tempo extra em alguma coisa útil, algo que beneficiasse não apenas ele, mas também toda a humanidade. De repente veio-lhe a mente a antiga máxima que trata da realização de um homem, ou seja: que um homem para se realizar precisava ter um filho (ele já tinha), plantar uma árvore (ele plantara uma mangueira quando era jovem) e escrever um livro (ele nunca escrevera um!) e foi aí que ele decidiu o que faria com seu tempo extra: escreveria um livro!
Mas qual seria o assunto de seu livro? Ele pensou nos diversos gêneros literários: romance? Não, eram muito comuns, ficção? Não, não era seu assunto preferido, poesia? Definitivamente não; auto-ajuda? Não, apesar de gostar do gênero só gostava como leitor. Alexander pensou, pensou e lembrou-se das partidas de xadrez que jogava com seu irmão quando criança e finalmente veio-lhe a solução: escreveria sobre xadrez. Sempre desejou aprofundar-se mais no jogo, mas devido a diversas responsabilidades sempre relegou o jogo a segundo plano até que na idade adulta com a faculdade, o trabalho e por fim com a vida de casado e de pai o esqueceu completamente. Como já era tarde da noite decidiu que era melhor dormir para bem cedo começar seu novo projeto. E finalmente, após mil idéias fervilhando na cabeça , Alexander pegou no sono.
No dia seguinte, bem cedo, Alexander começou a visitar sebos e livrarias procurando recolher o maior número possível de livros para tornar seu sonho em realidade. Esse período de garimpagem de livros durou aproximadamente uns três meses. De posse dos livros agora vinha a melhor parte: a da leitura. Alexander reunira um acervo considerável de livros (cerca de 30). Alguns deles eram em espanhol, outros em inglês e a grande maioria era em português que era por sinal o idioma em que se expressava no seu dia a dia, já que era brasileiro. Além dos livros ainda contava com a ajuda da internet, apesar de não ser o típico internauta que passa horas a fio na frente do microcomputador Alexander apreciava a internet, mas preferencialmente para trabalho e só agora ele a utilizaria para uma finalidade um tanto diferente da que estava acostumado, já que nesse caso o trabalho confunde-se com diversão, ou seja: reunir dados para a criação de seu livro!
Alexander se deleitava com cada página que lia. Ao terminar cada livro de xadrez fazia um balanço dos erros e acertos do livro em questão, ou seja, do que gostou do livro e do que não gostou. Alexander não era ainda “expert” em xadrez, mas com a leitura de todos os livros que comprara fatalmente seria, e esse era seu objetivo, pois só sendo um especialista em xadrez poderia realizar seu sonho de escrever um livro sobre este assunto.
O tempo foi passando e a quantidade de livros de xadrez que faltavam ser lidos foi diminuindo até que, finalmente, Alexander leu todos os livros que havia comprado. Alexander concluiu que os livros em sua maioria eram bons, porém alguns eram muito técnicos, escritos numa linguagem que só um enxadrista experiente a entenderia, por outro lado outros eram muito simplistas, limitados mesmos, acrescentando pouco conhecimento ao futuro enxadrista. Seu livro não seria assim, nem difícil demais, nem pouco abrangente, seu livro seria “perfeito”, na verdade “quase perfeito”, pois perfeito mesmo só Deus.
Alexander chegou à conclusão que um livro para ser bom tem de ser facilmente entendido pelo leitor ou em outras palavras: o escritor deve usar o máximo de simplicidade e de clareza em sua “conversa” com o leitor e se possível colocar-se no lugar do próprio leitor com a intenção de melhorar o texto escrito.
Alexander feliz com sua linha de raciocínio decidiu que seu livro se destinaria a iniciantes e começou a trabalhar.
Em seu livro Alexander abordaria os temas mais corriqueiros a um enxadrista iniciante ( O que é o xadrez, as peças que o compõem, o tabuleiro, o objetivo do jogo etc) e também temas mais complexos, indispensáveis na formação de um bom enxadrista, como: o xeque descoberto, o xeque duplo, o ataque descoberto, o ataque duplo, o skewer, a cravada (pregadura), a oposição, a triangulação, a regra do quadrado etc.
O leitor ao terminar de ler seu livro seria realmente um enxadrista e não alguém que sabe apenas “mexer as peças”, tudo isso numa linguagem simples e agradável ao leitor.
Depois de já ter toda a estrutura de seu livro montada só faltava a Alexander o nome do livro e este veio-lhe a mente quando ele estava tomando banho: Xadrez é Fácil D+ ! Este nome era ao mesmo tempo simples e objetivo e caía como uma luva no que Alexander queria transmitir em seu livro: simplicidade e clareza.
Os dias, semanas, meses e anos foram passando e finalmente Alexander terminou seu trabalho, mais precisamente no dia 5 de agosto de 2005 às 2:05h da madrugada. Faltava apenas alguém que bancasse a publicação e a distribuição de seu livro. E Alexander foi a luta. Depois de muitos nãos finalmente uma grande editora especializada em xadrez se prontificou a publicar o livro de Alexander: a Editora Xeque-Mate. Após a assinatura do contrato Alexander foi comemorar com seu filho, que voltara ao Brasil para passar férias, essa sua vitória pessoal num dos restaurantes mais caros do Rio de Janeiro: o Antiquarius.
E assim, feliz, Alexander passou o ano de 2005 e 2006, porém como nem tudo são flores Alexander não comemoraria o réveillon de 2007, morreria justamente nos 10 minutos que antecediam o ano novo de um ataque cardíaco fulminante, mas feliz por ter sido um homem no sentido completo da palavra: tivera um filho, plantara uma árvore e escrevera um livro.
E seu livro? Seu livro foi traduzido para mais de 300 idiomas e é vendido em cada canto do mundo para deleite de cada novo enxadrista que por ele se formou.


FIM




O Aficionado

Marcus Vinícius tinha verdadeira paixão pelo xadrez, aliás paixão não, que era um sentimento intenso, mas efêmero, o que ele verdadeiramente sentia pelo xadrez era amor, um amor intenso pelo “Jogo dos Reis”. Conhecia de cor o nome de cada um dos campeões mundiais: Steinitz, Lasker, Capablanca, Alekhine etc. Sabia também o ano em que cada um deles havia sido campeão e detalhes de suas vidas, tanto da particular, como da enxadrística. Sabia por exemplo que Paul Morphy (*) fora brilhante e que adorava posições abertas, onde fazia combinações brilhantes que demoliam seus adversários. Marcus também tinha conhecimento de que Paul Morphy fora o melhor jogador de xadrez de sua geração e que enfrentou e ganhou todos os grandes jogadores de sua época que tiveram a coragem de enfrentá-lo. Marcus também sabia da predileção de Morphy pela abertura chamada Gambito do Rei (uma abertura muito usada pelos jogadores daquela época que foi considerada a fase romântica do xadrez (**)) e que ele trocou o xadrez, no auge de seu esplendor, pela advocacia, porém sem o mesmo sucesso.
Marcus Vinícius gostava de angariar novos adeptos para o xadrez e tinha especial sucesso com as crianças. Gostava especialmente de contar histórias, lendas e curiosidades sobre o xadrez e seus principais jogadores. Ensinava às criancas que Caíssa era a deusa protetora do xadrez e que ele já era jogado muito antes de Alexandre, o Grande conquistar o mundo. As crianças adoravam. Marcus Vinícius tinha verdadeiro prazer em contar a história de como o menino Capablanca aprendeu a jogar xadrez. Capablanca tinha apenas quatro anos de idade quando aprendeu a jogar xadrez somente observando os movimentos das peças de uma partida jogada entre seu pai e um amigo dele. O menino Capablanca observou um movimento ilegal de cavalo e comunicou aos jogadores adultos para surpresa de ambos. Uma verdadeira façanha! - As crianças iam ao delírio e pediam para que eu as ensinasse esse jogo tão curioso e fascinante, o que eu fazia com o maior prazer. Dizia Marcus Vinícius.
As crianças viam que o xadrez não é um jogo difícil e praticado apenas por “nerds”, mas sim um jogo agradável e apaixonante onde duas mentes se confrontam usando como auxílio apenas o seu computador biológico: o cérebro humano!
O amor de Marcus Vinícius pelo xadrez era tão grande que, tal como Alekhine, ele o incluía em suas conversas mais corriqueiras, mesmo quando o assunto abordado pelo seu interlocutor não tinha nada a ver com esse nobre jogo.
Por causa do xadrez Marcus perdera duas mulheres que cansadas do que elas chamavam de: “sua obsessão”, acabaram pedindo a separação. Mas ele ligava? Que nada! Agora a mulher para ser sua esposa teria que ser enxadrista e gostar de xadrez tanto quanto ele senão ele preferia ficar sozinho, sozinho não: casado com o xadrez!
Quando Kramnik desafiou o computador Deep Fritz por uma polpuda “bolsa” Marcus Vinícius pensou com seus botões: “Se Kasparov não venceu o computador, não é o Kramnik que vai vencer.”
E infelizmente Marcus estava certo, apesar de o computador não ser o mesmo que Kasparov enfrentou, Kasparov conseguiu ao menos ganhar uma da máquina, o que Kramnik, o então campeão mundial, não conseguiu.
A humanidade estava de luto. A máquina vencera o homem aparentemente de forma definitiva.
Marcus Vinícius, entretanto, acreditava piamente que num futuro próximo surgiria um jogador tão completo que reuniria todas as qualidades contidas em jogadores como: Morphy, Capablanca, Alekhine e Kasparov e que este jogador, gerado num mundo iminentemente cibernético, colocaria o ser humano no seu devido lugar, de onde aliás nunca deveria ter saído: acima das máquinas de xadrez. Afinal de contas a criatura (programa de xadrez) era programada pelo homem (seu criador) e era portanto inconcebível para humanidade que a criatura (a máquina) sobrepujasse seu criador (o ser humano).
Enquanto esse dia não chega, Marcus Vinícius continua cultivando seu amor pelo xadrez nas crianças, jovens e adultos; semeando o terreno, para quem sabe? Ter o prazer de ser o responsável, ainda que indiretamente, pelo surgimento desse tão esperado redentor da raça humana na dura batalha homem (ser humano) versus máquina (programas de xadrez).



FIM

(*) Paul Morphy não foi campeão mundial, pois em sua época esse título ainda não havia sido criado, mas é considerado o melhor jogador de sua época e de todos os tempos. (Opinião na qual também me incluo.)

(**) A Fase Romântica do Xadrez ficou caracterizada pelos sacrifícios brilhantes e numerosos sempre visando ao xeque-mate. Nessa época não havia muita preocupação com o jogo posicional (estratégico) prevalecendo o jogo combinatório ou tático. Seus maiores expoentes foram o alemão Adolf Anderssen e o norte-americano Paul Morphy.



O Enxadrista e o Diabo


Idade das Trevas. Julien estava desesperado, pois no dia seguinte exatamente às 21:00h teria que entregar sua alma ao Diabo. Eram dezesseis horas do dia 2 de agosto de 1561, na linda Espanha, quando Julien entrou numa pequena igreja em Segura. Sua última esperança era o padre que seu irmão, Pablo, o recomendara. Pablo garantira a Julien que apesar de seu caso ser desesperador padre Ruy López o ajudaria a encontrar uma solução, pois apesar de sua pouca idade padre Ruy era muito sábio.
Julien entrou rapidamente na igreja e perguntou ao coroinha que arrumava o altar se padre Ruy se encontrava e, em caso contrário, onde poderia encontrá-lo. O coroinha largou o hostiário de prata que estava limpando no altar, olhou nos olhos desesperados de Julien e apontou para o confessionário. Julien agradeceu com um gesto de cabeça e dirigiu-se rapidamente para o confessionário apontado pelo coroinha. - Padre Ruy López? Perguntou Julien. - Sim, meu filho. Disse o padre. - Meu irmão Pablo me disse que só o senhor pode me ajudar. - Pablo Ibañez? Perguntou o padre. -Sim, ele mesmo. - Diga meu filho, o que lhe aflige? - A história é longa padre, mas vamos a ela. Tudo começou há doze anos atrás quando eu tinha apenas dezoito anos de idade. Eu era um garoto como outro qualquer, recém saído da adolescência, e com desejos de poder e riqueza para conseguir o que qualquer garoto de minha idade queria: sexo! Um “amigo” da faculdade me indicou um livro que me possibilitava entrar em contato com forças ocultas poderosíssimas, porém malignas, mais especificamente entrar em contato com o próprio Satã! Meu “amigo” me garantiu que o demônio me daria o que eu quisesse, mas para isso eu deveria fazer um “pacto” com ele. Fiquei de pensar e esqueci o assunto. Passaram-se dois anos até que me apaixonei ardentemente pela garota mais linda do mundo: minha aluna! Só tinha um detalhe: ela não me dava a mínima atenção. Tentei de todas as formas despertar seu interesse por mim: cumprimentava-lhe, todos os dias em que nos encontrávamos, carinhosamente, oferecia-me para ajudá-la nos estudos das outras matérias (eu era seu professor de Matemática) oferecia-lhe presentes, mas nada dava certo, definitivamente Natacha não gostava de mim. Até que olhando na minha estante, mais especificamente num livro que eu estava usando para fazer minha monografia, caiu no chão um pedaço de papel que continha o nome do livro de ocultismo que meu “amigo” havia me indicado para satisfazer todos meus desejos. Resolvi pagar para ver. Adquiri o livro e fiz a cerimônia conforme ele indicava. Invoquei o demônio e ele me garantiu que durante dez anos eu teria tudo que quisesse, mas ao fim desse prazo eu deveria entregar-lhe minha alma. Acabei concordando e ele sumiu na mesma nuvem de enxofre em que surgiu. Resolvi testar o pacto no dia seguinte e pedi para beijar a boca de Natacha. Dito e feito. No dia seguinte não só beijei-a como fiz amor com ela. E tudo foi acontecendo de acordo com minha vontade, era só eu pedir e a coisa acontecia. Isso durou exatamente o prazo estipulado pelo Diabo e amanhã às 21:00 h o prazo se encerra e eu devo cumprir minha parte no pacto dando-lhe minha alma, por isso que estou agora aqui padre, suplicando-lhe que salve minha alma, pois o que fiz foi uma inconseqüência juvenil. Isso é tudo padre. Deus que me ajude.
Meu filho, vejo uma luz no fim do túnel que é justamente a solução para seu caso. Para vencer o Diabo deve-se usar a vaidade e a arrogância dele contra ele mesmo. Quando você for vê-lo amanhã eu irei com você e tudo se resolverá.
Dito e feito. Exatamente às 21:00h do dia marcado o Diabo apareceu para cobrar sua parte no pacto, porém surpreendeu-se ao ver que Julien não estava sozinho, mas acompanhado de um homem de capuz com um manto em que se via uma grande cruz e disse: - Quem é ele? O que faz aqui? Foi então que o padre Ruy López se apresentou: - Sou aquele que o desafia para uma partida de xadrez cuja vitória assegurará a quem vencer a alma de Julien.
E quem disse que preciso jogar com você para ter uma coisa que já me pertence? Disse o Diabo.
O padre replicou: - Você está com medo de perder para um mero mortal, falso deus?
Tomado de cólera e com sua vaidade ferida o Diabo respondeu: - Que seja então, mas saiba padreco que nunca perdi uma partida e somente se você me ganhar salvará a alma desse idiota.
O Diabo usou seu poder e fez aparecer as peças e o tabuleiro. Por razões óbvias escolheu o exército negro dando a vantagem da saída ao padre Ruy López. Ficou estabelecido que a partida não teria tempo determinado devendo, portanto, ser jogada até que um dos jogadores abandonasse (hipótese fora de questão, já que os dois queriam vencer!) ou até que um deles levasse o xeque-mate.
O jogo começou. Ruy López usou uma abertura de sua autoria que surpreendeu inicialmente o Diabo. Porém o Diabo foi aos poucos equilibrando o jogo, mas a vantagem da abertura ainda prevalecia.
O Diabo capturou a dama de Ruy López com seu bispo e olhou altivamente para o padre com um sorriso irônico na boca acreditando que já havia ganho, pois ainda tinha sua dama e, devido a ela, possuía ampla vantagem material em comparação com o padre. O homem santo manteve-se impassível à alegria do demônio e deu xeque nele com seu bispo. O Diabo interpôs seu cavalo e cessou o xeque, porém Ruy López movimentou seu cavalo e sem perdão disse ao Diabo: - Xeque-mate! O Diabo surpreso olhou para o tabuleiro e ao notar que as peças após o xeque-mate formavam uma cruz transformou-se imediatamente numa nuvem de enxofre e desapareceu amaldiçoando Julien e o padre.
Julien estava salvo e foi deste modo que a abertura do padre Ruy López de Segura ficou famosa no mundo enxadrístico por ser a abertura que derrotou o Diabo.



FIM




O Desafiante

Estava ansioso, mas preparado para o match que se aproximava. Estudara bem o campeão, tanto suas partidas como sua vida pública, em especial suas reações diante do tabuleiro. Notara, por exemplo, que o campeão durante uma partida apresentava alguns tiques nervosos, que tal um jogador de pôquer prestes a blefar, denunciavam, ainda que subjetivamente, suas verdadeiras intenções, ou seja suas possíveis jogadas no tabuleiro. Para Peter Lekov, o desafiante, a soma desses pequenos detalhes poderiam ser o fiel da balança tanto para sua vitória como para sua derrota.
Anend, o campeão mundial de xadrez, era muito inteligente e sociável. Tentava e, conseguia com absoluto sucesso, conciliar sua vida de esportista (jogador profissional de xadrez) com os eventos sociais para onde volta e meia era convidado. Era indiano de nascimento, mas naturalizado inglês por opção. Tinha uma idade já avançada para o xadrez, 38 anos, mas continuava a brilhar nos mais diversos eventos enxadrísticos (torneios, simultâneas e matches) do cenário mundial.
Vissu Anend levava a sério sua preparação, mas sem exageros. Tinha uma equipe de mestres de primeira grandeza, que com o auxílio de potentes programas de xadrez, o auxiliavam em sua preparação, além disso não descuidava de sua preparação física, pois ela poderia fazer a diferença no exaustivo Match que em breve começaria.
Lekov sabia, também, de toda a preparação do campeão e pretendia usar esse conhecimento para derrotá-lo.
O Match estava programado para ter no máximo 24 partidas. Se ao final dessas 24 partidas o match terminasse empatado, o campeão manteria seu título.
Lekov para ser o novo campeão sabia que teria que suar sangue, suor e lágrimas (*), ou seja: teria que jogar bem mais que o campeão e essa não era uma tarefa das mais fáceis, muito pelo contrário, já que o campeão era conhecido pela sua prodigiosa memória (a memória do campeão era fotográfica!), pela sua grande inteligência e principalmente pela sua enorme tenacidade que o levava a lutar sempre, com todas suas forças, até o momento derradeiro em que a derrota era definitivamente inevitável. Mas isso não desanimava Lekov, ao contrário, dava-lhe forças para seguir em frente, pois ele via o confronto com o campeão como um desafio instigante que seria decidido nas pequenas sutilezas de cada uma das partidas a serem disputadas. A seu favor, Lekov contava com sua juventude (tinha apenas 21 anos!) , com um raciocínio veloz e profundo (era capaz de calcular diversos lances a frente, com a maior exatidão, em apenas poucos segundos!) e com nervos de aço, qualidades que, acreditava firmemente, o levariam indubitavelmente à vitória e ao título de campeão mundial de xadrez.
O treinamento de Lekov era muito exaustivo e diário só se permitindo descansar aos domingos para, no dia seguinte, começar tudo de novo. Estudava as partidas de Anend até a exaustão, procurando encontrar, com o auxílio de potentes programas de xadrez, fragilidades em seu jogo com a finalidade de explorá-las nas partidas do Match. Observara também as aberturas prediletas do campeão, seu estilo de jogo mais freqüente (Anend era um exímio atacante e adorava o jogo tático, combinatório) tudo isso de forma minuciosa e contínua e com o auxílio de uma equipe que não ficava nada a dever à de Anend, pelo contrário, era melhor que a do campeão.
Finalmente o dia do grande Match chegara. O resultado da primeira partida foi como uma ducha de água fria nas pretensões do desafiante. Ele perdera a partida em 52 movimentos, mas jogara com as negras. Lekov, apesar de ter nervos de aço, fora traído pela ansiedade da estréia. Sabia, entretanto, que podia dar a volta por cima e que ainda havia muita água para rolar antes de ser decidido, definitivamente, o vencedor do Match.
As dez partidas seguintes terminaram empatadas.
Lekov foi aconselhado por sua equipe a dificultar o máximo possível para o campeão, jogar duro para cansá-lo, já que sua idade cedo ou tarde acabaria prejudicando seu desempenho no tabuleiro.
Finalmente na décima segunda partida Lekov venceu o campeão. Lekov jogou com as brancas e usou a abertura Ruy López de forma impetuosa, procurando manter sempre a iniciativa, que o levou a sua primeira vitória sobre o campeão. A estratégia de cansar o campeão estava dando certo, pensou o desafiante. - Vou derrotá-lo! Disse Lekov para sua equipe.
Passaram-se mais oito partidas sem que ninguém conseguisse vencer, até que na vigésima primeira partida Lekov venceu novamente o campeão, passando a liderar o Match.
O campeão, apesar da derrota, não se abalara, porém estava profundamente irritado com seu desempenho nesta partida, já que perdera o jogo jogando com as brancas e utilizando sua abertura predileta: O Giuoco Piano.
Lekov ao contrário era todo sorrisos para fãs e jornalistas que dele se aproximavam. Acreditava mais do que nunca que o título estava próximo e era só uma questão de tempo.
Finalmente depois de mais duas partidas empatadas, veio a derradeira partida. Tal como o ex-campeão Emanuel Lasker, o campeão precisava da vitória na última partida para manter seu título.
Lekov era todo confiança, já que jogava com as brancas e só precisava de mais um empate para destronar o atual campeão.
A partida foi literalmente uma guerra, disputada palmo a palmo para desespero de equipes e fãs tanto de um lado como do outro. Para desespero, surpresa e frustração de Lekov, Anend venceu.
A preparação de Lekov foi perfeita, exceto por um pequeno detalhe: o campeão não era campeão à toa, mas o era e continuaria sendo pelo fato de ser capaz de superar seus limites, medos e angústias nos momentos mais difíceis para qualquer ser humano, ou seja de acreditar sempre, mesmo quando tudo parecia perdido e isso nenhuma preparação, por melhor que fosse, poderia proporcionar a alguém, pois afinal de contas: “Campeão é todo aquele que com sua tenacidade, dedicação e fé transforma o impossível em possível e que triunfa apesar de todas as opiniões em contrário.”

FIM



(*) A famosa frase dita por Winston Churchill, grande estadista inglês e primeiro-ministro da Inglaterra durante a segunda guerra mundial, ao povo inglês foi: “ Não tenho nada a oferecer a não ser sangue, trabalho, suor e lágrimas.”





O Viciado

Carlos Tenci era gaúcho de Pelotas e medíocre em tudo exceto no seu jogo predileto: o xadrez. Freqüentava com assiduidade o site do IXB (Internet Xadrez do Brasil) onde jogava com seus “amigos” disputadas partidas. Até aí nada demais, o problema era que Tenci tinha mania de grandeza, o pobre coitado era megalomaníaco! Lia diversos livros de auto-ajuda e biografias de pessoas famosas tentando captar o segredo do sucesso, Carlos sentia uma enorme necessidade de ser acima da média em alguma coisa, não importando o que fosse, na verdade essa necessidade refletia um forte complexo de inferioridade e sua válvula de escape era o xadrez, onde ele extravasava todas suas frustrações nas outras áreas de sua vida. No xadrez ele não era mais um na multidão, mas alguém de valor! (Seu rating era de 1700 pontos que é um rating acima da média, mas discreto e distante de um rating de um jogador de elite, ainda que amador) Quando conseguia ganhar uma partida Carlos ia ao delírio de alegria, e precisava mostrar para seu adversário que era “bom” e, por isso, vangloriava-se para seu adversário, fazendo auto-elogios e esperando deste um elogio, mesmo que não sincero, para se sentir enfim importante em algo, tudo isso em busca de um reconhecimento doentio capaz de aplacar seu forte complexo de inferioridade. Como era no xadrez que ele conseguia ser alguém, ainda que temporariamente, freqüentava o IXB com uma assiduidade acima do normal. O xadrez era a “droga” que fazia dele alguém e para viver Tenci precisava consumi-la cada vez em doses maiores. Carlos Tenci era um garoto problemático, conseguira fazer o segundo grau aos trancos e barrancos com reprovações quase contínuas, mas depois de seis anos no segundo grau conseguiu o tão almejado diploma, muito comemorado por sua mãe que acreditava ser ele um caso perdido. Por ser muito feio e tímido com as mulheres, não conseguia namorar nenhuma garota, elas na verdade fugiam dele, pois além de não ter nenhum atrativo físico ainda tinha a fama de néscio, confirmada por suas notas baixas na escola.
A vida social de Carlos era quase nula, ia apenas a algumas festas de aniversário de parentes e de alguns poucos amigos que possuíam as mesmas dificuldades que ele.
O vício pelo xadrez começou gradativamente. Inicialmente Carlos jogava poucas partidas e de forma esporádica, como perdia a maior parte delas não tinha muito incentivo para jogar. Quem o iniciara no jogo fora seu amigo Vieira Martins também gaúcho e pelotense.
Tenci, porém gostara muito do jogo que Vieira lhe ensinara e por esse motivo resolveu aperfeiçoar-se nele. Com este objetivo comprou no sebo diversos livros de xadrez e começou a lê-los. Carlos aprendia a cada página um pouco mais sobre o jogo: suas regras, princípios e sua história. O problema era que seu progresso no xadrez era muito vagaroso. Ele precisava de algo que o ajudasse a aprender xadrez de modo mais rápido e seu amigo Vieira deu-lhe a solução. Vieira disse-lhe que havia um programa de xadrez que tornava desnecessária a cansativa e árdua leitura de livros e mais: esse programa treinava e aperfeiçoava rapidamente qualquer um no xadrez desde o iniciante ao jogador avançado! O nome desse programa era: Treinador de Xadrez. Carlos Tenci ficou ansioso para ter esse jogo. Porém com o modesto salário de motoboy que ganhava, teria que juntar o dinheiro durante alguns meses, pois não queria se humilhar pedindo o dinheiro a seus pais e o jogo era relativamente caro. Finalmente, após 3 meses, Tenci adquiriu o programa de xadrez. No início estudava xadrez no programa antes e após seu emprego. Porém com o tempo o estudo de xadrez virou obsessão. Já não saía mais, nem assistia à tv e muito menos lia livros e jornais: dedicava-se de corpo e alma ao xadrez! No início seus pais não se preocupavam, pois achavam que essa mania passaria, mas eles estavam errados.
Carlos Tenci movido pela sua obsessão de se tornar um grande jogador de xadrez abandonou seu emprego para poder estudar ainda mais. O que inicialmente era um prazer tornara-se um vício, uma verdadeira obsessão!
Vieira informou a Carlos que o ex-campeão mundial Karpov jogaria uma simultânea no Rio Grande do Sul e por coincidência em Pelotas, na semana seguinte, dia 3 de agosto. Carlos agradeceu a seu amigo e preparou-se para o confronto. - Conseguirei ao menos o empate e quem sabe? A vitória! Pensava o pretensioso e ingênuo enxadrista. No dia da grande simultânea (40 tabuleiros) CarlosTenci estava sentado em um deles. Cumprimentou o ex-campeão mundial com um aperto de mão e com um olhar altivo e então começou a partida. Para sua decepção perdeu em poucos lances. Era o primeiro grande baque em seu delírio de grandeza.
O segundo grande baque veio poucos dias depois quando jogando no IXB defrontou-se com um jogador de nick (apelido) Morphy. Carlos conseguiu ganhar a partida com uma combinação rudimentar e feliz da vida disse: -Você é o Morphy, mas quem faz as combinações sou eu! Lindo!
O jogador de nick Morphy, que tinha o rating de 2100 pontos, respondeu: - Você é muito pretensioso, cara! Se meu mouse não tivesse escorregado você não venceria! Seu rating baixo! Cresça e apareça, quando for um jogador de elite e tiver um rating decente aí sim talvez você possa “tirar onda” em cima dos outros. Seu zero à esquerda! E desconectou. Carlos apoplético tentou se defender e contra-atacar, mas inutilmente, pois seu adversário já havia se retirado. Este foi o segundo grande baque no ego de Carlos Tenci.
O golpe final veio uma semana depois. Carlos não comia mais, não tomava mais banho, não falava mais com seus pais, nem com seus amigos, nem com Vieira seu melhor amigo, só para ficar diante da tela do computador jogando xadrez. Então, num trágico dia, numa dessas intermináveis partidas Carlos Tenci teve sua dama capturada e de repente num momento de grande desespero, literalmente surtou! Começou então a quebrar tudo em casa, puxando os cabelos e gritando para quem quisesse ouvir: - Comeram minha rainha! Comeram minha rainha!
A mãe e o pai de Carlos finalmente se deram conta que seu filho precisava de ajuda especializada e telefonaram imediatamente para uma clínica psiquiátrica especializada neste tipo de paciente. Carlos Tenci saiu amarrado numa camisa de força gritando aos berros e a plenos pulmões: - Comeram minha rainha! - Comeram minha rainha!
O único xadrez que Carlos Tenci veria agora seria o interior da cela onde ficaria confinado, Deus sabe até quando.

FIM




O Melhor de Todos

O Clube de Xadrez Fluminense ficava na rua Álvaro Chaves 51 no bairro das Laranjeiras, por coincidência na mesma rua em que está situado o Fluminense Futebol Clube. Era freqüentado pela elite carioca: médicos, advogados, economistas, engenheiros, arquitetos, “filhinhos de papai”, enfim, o clube era freqüentado pela nata da sociedade e era muito disputado por proporcionar: segurança, distração e convívio social com pessoas de altíssimo nível intelectual e financeiro.
Certo dia começou entre os sócios do clube de xadrez uma acalorada discussão sobre quem era o melhor jogador de xadrez de todos os tempos.
Philidor foi o melhor de todos. Descobriu a importância dos peões no jogo e foi o melhor jogador de sua época (1745 a 1795). Disse o arquiteto Geraldo Flores.
Ele foi bom, mas não foi melhor que o alemão Adolf Anderssen. Anderssen teve duas partidas imortalizadas no xadrez (“A Imortal” e a “Sempre-Viva”), era imbatível no jogo combinatório, e foi o melhor do mundo de 1851 a 1858 e novamente em 1862 a 1866, ou seja um verdadeiro gênio do xadrez. Disse o engenheiro Alexandre Dryer.
Desculpem-me, mas vocês dois estão errados! O melhor jogador de todos os tempos foi o brilhante Paul Morphy, que derrotou Anderssen de forma categórica (venceu 7 partidas, empatou duas e perdeu apenas duas partidas!) sendo considerado o melhor jogador do mundo de 1858 a 1862. Foi imbatível no jogo aberto e tático, além disso trouxe diversas inovações ao xadrez (como a exploração do jogo aberto e o desenvolvimento do maior número possível de peças com ganho de tempo, uma grande inovação na época!), por fim foi imortalizado na abertura Ruy López – variante Defesa Morphy- e também pela partida que ficou conhecida como “Jóia de Primeira Água” na qual utilizou toda sua técnica e talento para derrotar de forma contundente o Duque de Brunswick e o Conde Isouard com um belo xeque-mate. Disse o eufórico capitão de fragata Marcus Catão.
Realmente concordo que todos os jogadores citados tiveram seu valor, mas nenhum deles foi campeão mundial (*) de forma tão brilhante como Bobby Fischer! Bobby Fischer foi campeão mundial de forma contundente em 1972 e trouxe o título que costumava ser de jogadores soviéticos para as Américas acabando com a supremacia dos jogadores russos! Além disso foi Grande Mestre Internacional de Xadrez com apenas 15 anos de idade! Fora isso era um gênio no jogo combinatório um exímio atacante e excelente em todas as fases do jogo. Por fim, criou o Chess960 (uma nova modalidade de xadrez) e o relógio digital Fischer e, ao contrário de Morphy que brilhou intensamente, mas de forma passageira, Bobby sempre se dedicou de corpo e alma ao xadrez pelo qual tinha (e ainda tem!) verdadeira obsessão! Disse, de forma exaltada, o economista Luciano Torres.
Olha todos os jogadores mencionados foram muito bons, mas vocês estão se esquecendo do grande Emanuel Lasker que foi campeão mundial por 27 anos!!! (de 1894 a 1921) Ninguém até hoje igualou o grande feito de Lasker e é quase certo que ninguém o fará, pois Lasker foi no xadrez o que Pelé foi no futebol!
Disse confiante em seu argumento o surfista Marcelo Miranda.
Emanuel Lasker foi ótimo, mas Capablanca foi ímpar! Além de destronar Lasker sem perder uma só partida, aprendeu a jogar sozinho aos quatro anos de idade observando seu pai jogar com um amigo e com apenas 12 anos de idade derrotou o campeão de seu país! Não tinha o hábito de ler livros sobre xadrez, mas escreveu três! Capablanca foi um verdadeiro gênio! O Mozart do xadrez! Disse de modo esfuziante o médico Augusto Bernardes.
É verdade caro Augusto, Capablanca foi genial, mas o que você me diz de Alekhine que o derrotou de forma contundente em 1927 (com três vitórias de vantagem), de sua memória prodigiosa (em 1933 quebrou o recorde de simultâneas às cegas que era de Réti jogando contra 32 jogadores!) de suas brilhantes combinações e de seu amor obsessivo pelo xadrez? Por fim, saiba caro Augusto, que o grande Alekhine morreu de posse do título em 1946, ou seja morreu campeão!
Fez-se um silêncio sepulcral, até que, finalmente, Odair Menezes, servidor público, pediu a palavra: - É verdade que todos esses jogadores referidos anteriomente foram brilhantes, isso eu não discuto, mas me digam: Qual deles é melhor que Karpov que além de ter sido campeão mundial e ser um gênio no jogo posicional ( e excelente em todas as fases do jogo!) é recordista de torneios de xadrez conquistados (mais de 160!) em toda a história do xadrez, feito que talvez nunca seja igualado por outro jogador de xadrez profissional, nem mesmo por um campeão mundial de xadrez!
Leônidas da Silva, designer gráfico, que tinha esse nome em homenagem ao grande jogador de futebol, discordou imediatamente: - Caro Odair, se você acha que Karpov é o melhor de todos, o que você me diz do grande Kasparov que o derrotou em todos os matches ( foram 5!) que eles disputaram, exceto no primeiro que foi anulado por “armação” ? Espere! Antes de responder, saiba que Kasparov foi o mais jovem campeão da história do xadrez com apenas 22 anos!(**) (contra Karpov), e, tal como Capablanca, aprendeu a jogar xadrez sozinho (com apenas 6 anos de idade!) somente observando uma partida jogada entre seus pais, e saiba também que ele foi o primeiro campeão mundial a quebrar a barreira dos 2800 pontos de rating no Sistema ELO e o primeiro a enfrentar um poderoso computador (programa de xadrez) e o vencer! (Kasparov venceu o Deep Thought da IBM em 1989)
Um gaiato que estava atrás de todos os enxadristas gritou e logo se escondeu: - Melhor de todos é o Deep Blue que venceu o Kasparov!!!
Todos os sócios e amigos enxadristas riram muito dessa tirada engraçada, já que o Deep Blue era um computador e não um ser humano e a discussão era sobre quem era o melhor jogador de xadrez humano de todos os tempos. Por fim, resolveram ir ao bar mais próximo para afogar suas diferenças com cervejas geladinhas e terminar de vez essa discussão que pelo jeito nunca teria fim.
E pra você leitor, quem é o melhor de todos no xadrez?


FIM





(*) O título de campeão mundial de xadrez só foi criado em 1886 e o primeiro campeão foi Wilhelm Steinitz.

(**) Atualmente o recorde de campeão mundial mais jovem da história do xadrez pertence a Ruslan Ponomariov (ucraniano) campeão de 2002 pela FIDE com apenas 18 anos de idade!






Mão Pesada


Richard Alexander Fischer era, apesar do nome, brasileiro e carioca mais precisamente da Tijuca. Entre seus amigos era conhecido como “gringo” e costumava pegar onda com a “galera” na Prainha e em Grumari. Apesar de gostar muito de surfe (adorava pegar “tubos” e se exibir para as ninfetas fazendo vários 360 graus!) o esporte predileto de Richard não era praticado no mar, mas em terra: o xadrez.
Richard sempre estudara em bons colégios, apesar de públicos, como por exemplo o famoso Colégio Pedro II, também conhecido como “Colégio Padrão” ou simplesmente CPII, e passou (sem fazer curso pré-vestibular!) para Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) onde formou-se com distinção em Informática com apenas 21 anos de idade!!
Richard Alexander Fischer era sócio de um site de xadrez chamado IXB (Internet Xadrez do Brasil) desde os 19 anos. Entre os amigos do site era conhecido pelo seu “nickname” (apelido) : Mão Pesada. No xadrez a alcunha Mão Pesada é dada àqueles jogadores muito fortes e experientes que costumam, ao menor deslize de seus adversários, esmagá-los sem piedade de forma rápida e arrasadora.
Richard Alexander fazia jus ao seu “nick”, pois seu rating era de 2515 (um rating equivalente ao de um Grande Mestre Internacional da FIDE), e apesar de não ser um rating oficial servia para massagear o ego e a vaidade de Richard que era brilhante em tudo o que fazia.
Quando jogava xadrez Richard Alexander pensava apenas na forma mais rápida de derrotar seu adversário de preferência fazendo-o com brilhantes sacrifícios que culminavam em mates de linda beleza tais quais os mates que seu ídolo Bobby Fischer costumava aplicar em seus oponentes. Adorava arrasar os egos de seus adversários, reduzi-los a pó, ou seja, mostrar-lhes que diante de toda sua técnica seus adversários não passavam de meros capivaras (jogadores fracos ou iniciantes).
Richard Alexander gostava de jogar a modalidade de xadrez conhecida como Blitz Chess ou Xadrez Relâmpago. Sua preferência por essa modalidade devia-se ao fato de já conhecer a fundo todos os fundamentos do jogo e pelo fato de pensar rápido, muito rápido o que era uma condição “sine qua non” para a prática dessa modalidade. Como além de jogar rápido também era capaz de ver e calcular vários lances a frente de modo preciso e profundo invariavelmente levava vantagem sobre seus “pobres” adversários.
Apesar de seu dom e talento inato para o xadrez, descoberto tardiamente aos 14 anos de idade, Richard Alexander não seguira a carreira enxadrística porque sua mãe, dona Lucy, não deixara, pois acreditava que seu filho teria mais sucesso com um diploma de bacharel na mão do que numa carreira errática e incerta como era a de jogador profissional de xadrez.
Richard Alexander escolhera então a Informática porque adorava Matemática, que aprendera a gostar durante a leitura do excelente livro o Homem que Calculava de Malba Tahan quando tinha apenas 12 anos de idade, e também porque era a ciência do futuro. Quando terminou o curso superior de Informática, com excelentes notas, não queria trabalhar em empresas da área, pois acreditava que não tinha o perfil do profissional que essas empresas buscavam. Teve então a brilhante idéia de desenvolver um programa de xadrez que tornasse os capivaras em jogadores como ele: mãos pesadas! Fazendo isso ele uniria o útil ao agradável, pois além de se divertir usando seus conhecimentos e talentos tanto na informática como no xadrez para criar o programa ainda ganharia um bom dinheiro com isso.
Conhecendo “O Caminho das Pedras do Xadrez” (*) como ele conhecia e tendo profundos conhecimentos de informática não seria difícil para Richard desenvolver um programa de xadrez que atingisse a finalidade que ele desejava, ou seja: a de transformar jogadores fracos ou iniciantes em jogadores fortes e experientes!
Neste programa de computador ele abordaria os temas que todos os jogadores que desejam se aperfeiçoar no xadrez devem conhecer a fundo: (ou como dizia um professor de faculdade: “tem que estar no sangue!”) táticas, estratégias, finais de jogos, diversos tipos de xeques-mate, aberturas, jogos de jogadores famosos, enfim todos os alicerces necessários do xadrez capazes de tornar um capivara num Mão Pesada. Só faltava agora o nome do programa e este veio-lhe de estalo: Professor de Xadrez afinal de contas o que o programa fazia nada mais era que ensinar um jogador incipiente ou fraco a tornar-se um jogador traquejado e forte.
Richard conseguiu criar o programa com sucesso. Cinco anos depois o Professor de Xadrez é conhecido não só no Brasil, mas em diversos países. Com o dinheiro obtido pela venda do programa de xadrez Richard Alexander Fischer mudou-se para Barra da Tijuca onde vive numa luxuosa mansão com seus pais e sua esposa Cristiane.
O “gringo” continua surfando com a “galera” só que agora na praia da Barra da Tijuca, seu novo “point”, mas sem esquecer sua paixão, o xadrez. Mão Pesada continua massacrando seus adversários no IXB, mesmo aqueles que compraram e estudaram seu programa de xadrez, afinal de contas uma vez Mão Pesada sempre Mão Pesada.

FIM



(*) “O Caminho das Pedras do Xadrez” de Richard Alexander Fischer é o seguinte:

1)Estudar os seguintes livros de xadrez: Xadrez Básico de Orfeu Gilberto D'Agostini; Lições Elementares de Xadrez de J.R. Capablanca; My System de Aaron Nimzowitsch e Bobby Fischer Ensina Xadrez de Bobby Fischer, S.Margulies e D. Mosenfelder.
2)Conhecer a fundo as regras do xadrez, seus princípios e seus conceitos;
3)Estudar as partidas de jogadores famosos: Morphy, Capablanca, Alekhine, Kasparov etc.
4)Estudar suas próprias partidas procurando os erros (para não mais repeti-los!) e os acertos (para usá-los contra seu próximo adversário!) buscando sempre a melhora de seu jogo.
5)Estudar as Aberturas e os Finais de Jogos buscando com isso ter alguma vantagem sobre seu oponente.
6)Jogar sempre contra jogadores fortes. Mesmo que você perca, sempre aprenderá alguma coisa.
7)Por fim, estudar diversos tipos de Xeques-mate e de Combinações.




Xadrez às Cegas (*)

Júlio César Nahas tinha verdadeira paixão pelo xadrez que aprendera a jogar aos 6 anos de idade por intermédio de seu irmão mais velho Alexandre.
Júlio César chegou a ser jogador federado até a adolescência chegando a acumular inúmeros troféus e medalhas nas diversas competições em que participou. Porém quando atingiu a idade de dezessete anos teve que fazer uma difícil escolha: tornar-se um enxadrista profissional ou continuar os estudos e se tornar calouro numa boa universidade. Por influência dos amigos e de sua família, principalmente de sua mãe, acabou optando pela continuação de seus estudos. Se essa era ou não a melhor escolha só o tempo lhe mostraria, era porém uma escolha da qual não haveria mais volta, pois um jogador profissional de xadrez de primeira linha (“top”) atinge seu ápice cada vez mais cedo e os jogadores com mais de 35 anos, com poucas exceções, já são considerados “velhos” para o xadrez que a cada ano que passa confirma essa tendência revelando cada vez mais prodígios e aposentando prematuramente outrora grandes jogadores.
O tempo passou e Júlio César Nahas não era mais um adolescente preocupado com escolhas profissionais, mas um homem feito com seus 38 anos de idade e um alto executivo de uma empresa multinacional (ESSO) onde ocupava o importante cargo de economista-chefe.
Júlio César apesar dos anos que se passaram mantinha sua paixão pelo xadrez e disputava, sempre que seu tempo permitia, animadas partidas com seus amigos de infância, todos formados, e com seu irmão, Alexandre, Capitão de Mar e Guerra da marinha brasileira.
Júlio César Nahas tinha casado e morava na Barra da Tijuca com sua esposa Michele e sua filha recém-nascida Cristiane.
Tudo corria bem para Júlio César tanto no trabalho quanto em sua vida pessoal até o dia em que ele tendo um pouco de dificuldade para ler uma bula de um remédio achou que precisava consultar um oftalmologista.
No dia seguinte, após o trabalho, Júlio César Nahas foi até um oftalmologista, que devido a correria no trabalho não ia há dez anos, e fez os exames. O oftalmologista começou com o exame das letras no quadro para saber se Júlio César as via. Júlio César enxergou as maiores (nas três primeiras linhas), mas deixou a desejar nas menores (quatro linhas restantes). Júlio César então perguntou sorrindo ao médico: - Vou ter que usar óculos, não é doutor? O médico deu-lhe um olhar apreeensivo e passou para o próximo exame. Após o exame de fundo de olho o oftalmologista balançou a cabeça de um lado para o outro, aparentemente assustado com o resultado do exame. Júlio começou a ficar apreeensivo, mas não disse nada. Finalmente após o exame de visão periférica o médico deu uma dura notícia a Júlio César: - Sinto muito senhor Júlio, mas em poucos anos o senhor ficará completamente cego e não há nada que eu ou qualquer outro médico possa fazer para evitar isso.
Júlio César Nahas olhou para o médico muito assustado e gaguejando perguntou o que tinha. - O senhor tem glaucoma nas duas vistas em um estágio bem adiantado. Seu campo de visão periférica já está bastante estreito, pois o senhor já está num estado avançado desta doença e sua cegueira é irreversível. Sinto muito.
Júlio César Nahas então chorou. Chorou como nunca chorara em toda sua vida. Pensou na sua filha e que não a veria crescer, pensou também que não veria mais sua linda esposa, seus pais e seus amigos, enfim não veria mais nada a não ser um escuro, profundo e sombrio breu. O oftalmologista esperou Júlio César se acalmar e disse-lhe algumas palavras de conforto. Júlio César, em estado de choque, despediu-se do médico e foi pra casa.
Júlio César contou a sua esposa tudo que o médico lhe dissera. Michele ouviu tudo em silêncio com um olhar triste e complacente. Michele, após ouvir tudo que seu marido tinha pra dizer, disse que ele deveria procurar outro oftalmologista, pois há diversos casos de erros médicos documentados em reportagens exibidas nos mais diversos veículos de comunicação (jornais, revistas, televisão, internet) pra quem quiser ver. Há diversos casos em que o médico se enganou no diagnóstico da doença de seu paciente ou na sua possibilidade de cura, afinal de contas o médico também é humano e portanto falível. Júlio César se animou um pouco com as palavras de Michele e decidiu fazer amanhã mesmo um “check-up” completo, e também consultar um outro oftalmologista.
Júlio César fez o “check-up” cujo resultado ficaria pronto em três dias, mas a notícia do outro oftalmologista que consultou não foi diferente da do primeiro: ele ficaria cego e em breve!
Júlio César Nahas ficou desolado com esta notícia. Contou a sua esposa que o orientou a procurar mais um oftalmologista e se esse confirmasse o que os outros médicos anteriores disseram ele deveria se conformar, pois essa era a vontade de Deus.
Passados os três dias Júlio retornou ao consultório do médico que lhe prescreveu os exames do “check-up” e lhe entregou os resultados dos mesmos. O clínico geral após examinar os exames do “check-up” de Júlio César recomendou que ele fizesse alguma atividade física regularmente e evitasse alimentos gordurosos, pois seu nível de colesterol LDL estava bem acima do recomendável e por esse motivo ele corria um risco bastante considerável de ter um enfarte ou um derrame.
Júlio César agradeceu ao médico e foi até o consultório do oftalmologista, Dr. Mauro Meira, uma verdadeira sumidade, para saber definitivamente se havia alguma esperança para seu caso.
Dr. Meira fez todos os exames e dirigindo-se a Júlio César Nahas disse: - Sinto muito, mas o senhor vai ficar cego e em pouco tempo.
Júlio César, conformado, então perguntou: - Quanto tempo eu ainda tenho de visão doutor?
Talvez 2 anos, no máximo 3.
Júlio César abaixou a cabeça e Dr. Meira que era um homem vivido com seus 60 anos de experiência de vida disse-lhe: - Meu caro, você poderia ser meu filho e o conselho que vou lhe dar é o mesmo que eu daria pra ele: Aproveite a vida! Veja tudo que você pode ver, leia livros, veja filmes, viaje, enfim divirta-se! Saiba que cego ou não você ainda tem toda uma vida pela frente, e esta notícia apesar de má não é sua sentença de morte, mas talvez um novo renascimento: assim como a fênix renasceu das cinzas você também pode renascer! Seja feliz! É o que lhe desejo de coração!
Júlio César agradeceu as palavras de consolo do médico, despediu-se dele e foi pra casa.
Sua esposa perguntou se tudo tinha corrido bem e Júlio muito triste contou-lhe tudo que acontecera.
Michele então abraçou-o e ambos choraram copiosamente. Júlio César, que estava licenciado do trabalho, decidiu que entraria com seu pedido de aposentadoria no dia seguinte e assim o fez.
Júlio César Nahas decidiu aproveitar o pouco tempo que ainda tinha de visão para ver tudo que pudesse. Começou a ler todos os livros que sempre quis ler, mas nunca tinha tempo já que era um “workaholic”. Decidiu também filiar-se a um clube de xadrez e jogar diariamente até cansar, decidiu também ver filmes, peças de teatro, viajar para Paris (para ver a Torre Eiffel) enfim decidiu ver tudo que pudesse e aproveitar o máximo possível tudo que sua visão ainda lhe podia proporcionar, afinal de contas não sabia com certeza absoluta o dia em que ficaria completamente cego e se Deus lhe deu essa dádiva (sua visão) ele deveria aproveitá-la até o momento em que Ele resolvesse tirá-la. Mas Júlio César Nahas acreditava que se Deus estava tirando sua visão é porque havia um motivo maior por trás disso: fazer com que ele cuidasse mais de sua saúde! E ele assim o fez: contratou um personal trainer para o exercitar e passou a fazer dieta orientado por um amigo nutricionista.
O último livro que Júlio César leu antes de perder completamente a visão foi um livro de auto-ajuda que se chamava: “Só você pode se ajudar!” Neste livro de Allan Bueno, Júlio César se emocionou com a história de Helen Keller que mesmo surda, muda e cega conseguiu deixar sua marca no mundo ajudando diversas pessoas tanto fisicamente como com sua história de vida.
Júlio César após ler este livro começou a pensar nas pessoas que nunca tiveram o privilégio de ver e ele tivera este privilégio. Pouco antes de terminar este livro “a ficha caiu” para Júlio César Nahas: sabia que não poderia mais jogar xadrez como antes quando via as peças e o tabuleiro. Teria que jogar xadrez às cegas, mas como tinha uma ótima memória isso não seria problema.
Tinha certeza de que poderia participar de torneios e campeonatos com a mesma desenvoltura de sua infância e adolescência bastava apenas se preparar. Júlio César decidiu não usar sua deficiência visual como desculpa para não conseguir seus objetivos. Na verdade ele ainda tinha todos os outros sentidos ( tato, paladar, olfato, audição) e sua intuição que se bem usados poderiam compensar a perda de sua visão.
Júlio César, já cego, começou a treinar xadrez com um treinador que ele contratara no Clube de Xadrez Argentino. Paulo Ramos era Grande Mestre Internacional de xadrez (GMI), muito rigoroso e também muito competente. Era formado em Educação Física pela USP e possuía diversos doutorados nacionais e internacionais. Enfim era um eminente treinador. Sua frase favorita era: “Mente sã em corpo são”. Para Paulo Ramos treinar jogadores para o xadrez às cegas não era novidade. Era um treinador experiente, com trinta e cinco anos, dos seus quarenta e cinco anos de idade, dedicados ao xadrez, sendo que quinze deles como treinador. Não era portanto um aventureiro, mas alguém que sabia muito bem o que queria e o que poderia exigir de quem aceitasse ser seu aluno.
No primeiro dia de treinamento de Júlio César, Paulo Ramos disse-lhe sua filosofia de trabalho e o que esperava dele. Disse também que só o aceitara como aluno porque via nele um grande potencial e que pra este potencial tornar-se uma realidade só dependia dele, Júlio César. - Júlio, antes de você vencer seus adversários você precisa vencer a si mesmo. Não se limite por causa de sua deficiência, mas faça dela uma aliada para sua vitória! Júlio César agradeceu os conselhos de seu treinador e o treinamento teve início. Paulo Ramos procurava sempre exercitar a memória de seus pupilos para esta modalidade de xadrez, pois sem ela não há como competir no xadrez às cegas. Ele dizia onde as peças estavam localizadas no tabuleiro e em seguida perguntava a Júlio César, fora da ordem que ele havia dito, onde estava localizada cada peça. Júlio César contava apenas com sua memória e graças a ela podia ver em sua mente todas as peças que seu mentor havia lhe dito e repetia suas respectivas localizações sem um erro sequer. Mas o treinamento não ficava só nisso. Na verdade a localização das peças era apenas o aquecimento. Havia treinamento de aberturas, de tática, de estratégia e também de finais de jogos, de partidas famosas e de exercícios variados, tudo isso exigia muito da memória de Júlio César, que correspondia facilmente. Esse treinamento visava preparar Júlio César Nahas para qualquer tipo de competição enxadrística seja para um torneio ou para um match, ou seja, para qualquer tipo de disputa do “blind chess” (xadrez às cegas)
Júlio César já estava se acostumando com a sua nova condição. Estava aprendendo braille no intervalo de seu treinamento. Afinal de contas poderia voltar a ler, mas com as mãos. Sua esposa e sua filha davam-lhe total apoio para sua nova empreitada. Sua família e amigos idem. Além disso já conseguira controlar o colesterol por meio da dieta e do treinamento físico com seu personal trainer, e fazia seus exercícios sempre com muito entusiasmo.
Passado um ano e meio, Paulo Ramos já achava que seu aluno poderia competir com chances de sucesso. Júlio César estava confiante, pois se dedicara inteiramente a esta nova modalidade de xadrez. O treinador de Júlio César disse-lhe que haveria um torneio no mês seguinte e que eles deveriam treinar mais intensamente até a data do torneio e Júlio César concordou.
Paulo Ramos decidiu que Júlio já estava num nível técnico muito bom e por isso procuraria dar-lhe apenas ritmo de jogo. Paulo jogava e dizia seu lance para seu pupilo que após pensar um pouco dizia sua jogada. Mesmo vendo o tabuleiro Paulo empatava quase sempre com Júlio César, isso quando não perdia, pois afinal de contas além de sua excelente memória Júlio César Nahas era inteligentíssimo e isso Paulo Ramos já descobrira.
Chegou o grande momento. O torneio de xadrez às cegas seria disputado no Rio de Janeiro no luxuoso hotel Copacabana Palace. Diversas autoridades estavam presentes para prestigiar o primeiro torneio internacional de xadrez às cegas na cidade do Rio de Janeiro. Havia desde o prefeito ao governador, além de enxadristas do quilate de Mequinho e Rafael Leitão, inclusive um enxadrista que já foi campeão mundial de xadrez e ainda continua em atividade com sucesso, uma verdadeira lenda do xadrez: Anatoly Karpov.
Toda a família de Júlio César Nahas também estava presente, e seus amigos junto com a platéia gritavam seu nome repetidas vezes: - Júlio! Júlio! Júlio!
Paulo Ramos estava sério, mas acreditava fielmente em Júlio César, pois afinal de contas o trabalho com ele fora muito bem feito e agora era a hora de colher os frutos.
Havia com Júlio César 12 participantes. Entre os participantes havia russos (3), norte-americanos (4), um chinês, um inglês, um alemão e um francês. Júlio César era o único brasileiro! Sua responsabilidade portanto era grande, mas ele estava preparado para isso, aliás muito bem preparado.
A disputa se daria da seguinte maneira: os 12 jogadores foram divididos em três grupos de quatro jogadores. Os quatro jogadores de cada grupo deverão enfrentar-se no sistema duplo round robin (todos contra todos com cores alternadas) Os vencedores de cada grupo se enfrentarão também no sistema duplo round robin e o vencedor ganhará US$ 100.000,00, o segundo US$ 50.000,00 e ao terceiro lugar caberão US$ 20.000,00. Os jogadores restantes receberão o prêmio de participação de US$ 500,00.
Júlio César apesar de querer ardentemente vencer o torneio não o fazia pelo dinheiro, mas pelo prazer intenso que o xadrez ainda lhe dava. Ganhar seria uma conseqüência natural e uma grande honra, pois ele representava neste torneio 180 milhões de brasileiros e não queria decepcioná-los.
Júlio César Nahas ficara na chave do norte-americano Douglas Kiraly, do chinês Min Ling e do alemão Karl Heinz Ziber. Um detalhe curioso é que nenhum destes três jogadores eram cegos! Mas não teriam vantagem em relação a Júlio César, pois jogariam de olhos vendados.
Júlio venceu os quatro primeiros jogos e empatou os dois últimos classificando-se facilmente para a fase decisiva.
Júlio César enfrentaria agora um russo e um norte-americano. O russo era um excelente finalista (especialista em finais de jogos no xadrez), um bom tático, mas muito impulsivo e esse era o ponto fraco que Júlio César deveria explorar. Seu nome era Vassyli Yadov.
O norte-americano era frio e calculista, excelente em aberturas, no meio-jogo, mas não era tão bom finalista como o russo apesar de ser excelente no jogo combinatório. Era um exímio atacante e partia pra cima de seus adversários para decidir logo o jogo e esse era seu calcanhar de aquiles: ele costuma deixar a defesa desguarnecida em prol do ataque! Seu nome: Pat Makinley.
Júlio César Nahas não ficava atrás de seus adversários: era um excelente tático, conhecia diversas aberturas de forma profunda e variada, era um bom estrategista e um ótimo finalista, porém era muito ansioso e não gostava de partidas fechadas, preferindo o jogo aberto e esse era seu ponto fraco que certamente seus adversários haveriam de explorar.
Paulo Ramos desejou sorte a Júlio César e a primeira partida teve início. Júlio César Nahas jogou com as pretas contra o russo e perdeu. O russo conduziu o jogo de forma segura e fez prevalecer sua vantagem de jogar com as brancas explorando bem a abertura Espanhola.
Júlio César não desanimou, pois sabia que havia perdido uma batalha, mas não a guerra. Paulo Ramos deu-lhe forças e a torcida, apesar de sua derrota, gritava seu nome em coro: - Júlio! Júlio! Júlio!
Na segunda partida Júlio César, jogando com as brancas, ganhou o norte-americano de forma categórica usando a abertura do Gambito da Dama.
A partida seguinte entre o norte-americano e o russo terminou empatada.
A primeira rodada acabou com o russo em primeiro com 1,5 pontos, Júlio César em segundo com 1,0 ponto e o norte-americano em último com 0,5 ponto.
A rodada decisiva ia começar. Júlio César Nahas só dependia de si. Bastava ganhar as duas partidas que seria campeão. A primeira partida da segunda e última rodada teve início. O russo jogando com as brancas conseguiu apenas empatar com o norte-americano. Quando o resultado foi anunciado Júlio César deu um discreto sorriso e preparou-se para enfrentar o norte-americano.
Júlio César precisava vencer esta partida para continuar com chances reais de vencer o torneio.
Ao norte-americano só restava vencer e torcer para que Júlio César vencesse o russo, pois neste caso haveria um empate triplo em número de pontos: dois pontos para cada jogador, e este empate persistiria no confronto direto entre eles (ninguém teria vantagem sobre os dois outros jogadores). Portanto devido a isso o regulamento previa que neste caso o desempate, e portanto o título, seria decidido pelo maior número de vitórias na primeira fase do torneio e nesta fase o norte-americano venceu todas suas partidas (6) contra cinco do russo e quatro do brasileiro.
Pat Makinley sabendo que ainda podia ser campeão fez tudo que pode para segurar o ímpeto de Júlio César, mas sucumbiu diante da pressão avassaladora que Júlio César exerceu no jogo todo mesmo jogando com as pretas.
Para Júlio César Nahas agora só a vitória interessava era “vencer ou vencer” como dizia o grande presidente do tricolor carioca, Francisco Horta, nas grandes decisões futebolísticas. A torcida gritava animadamente: - Olê, Olá o Júlio César está botando pra quebrar! E também dizia: - Yadov pode esperar a sua hora vai chegar!
O árbitro pediu que a platéia fizesse silêncio e teve início a fatídica partida. Júlio César jogou com as brancas. Pressionou o russo de todas as formas que podia. Usou todo seu arsenal: xeques-descobertos, ataques duplos, skewers enfim fez o diabo para ganhar, mas não deu. Devido a seu tempo que estava se esgotando, Júlio César aceitou a oferta de empate oferecida por Yadov mesmo com uma grande vantagem material em relação a ele.
O resultado total de pontos e a classificação final ficou assim: em primeiro lugar
Vassyli Yadov com 2,5 pontos; em segundo lugar Júlio César Nahas também com 2,5 pontos e em terceiro lugar com apenas 1,0 ponto o norte-americano Pat Makinley. Júlio César fez o mesmo número de pontos que o russo, mas perdera o primeiro lugar no confronto direto.
A torcida, após o anúncio da classificação definitiva e do recebimento dos troféus e da premiação pelos jogadores diretamente das mãos de Anatoly Karpov, “um monstro sagrado do xadrez”, aplaudiu de pé Júlio César Nahas reconhecendo seu valor. Michele, chorando de alegria agarrada em sua filha, Cristiane, não via seu marido como um derrotado, mas sim como alguém que soube superar suas deficiências de uma forma honrosa e muito digna.



FIM


(*) Xadrez às Cegas (ou “Blind Chess”) é uma modalidade do xadrez em que os jogadores não podem ver nem as peças nem o tabuleiro. Nesta modalidade do xadrez os jogadores jogam com os olhos vendados, exceto se forem cegos quando a venda nos olhos não é utilizada por razões óbvias, e os lances de cada jogador são transmitidos a cada um deles por intermédio de um árbitro.





“O Jogo”

Século XVII. Os corsários piratas dominam os mares: franceses, ingleses ou holandeses os piratas davam um enorme prejuízo aos cofres de Espanha e Portugal que se defendiam dessa “praga” como podiam. Neste turbilhão de acontecimentos um enxadrista famoso, Paolo Bonno, preparava-se para viajar para Inglaterra onde disputaria o torneio de Aberdeen na cidade de Liverpool. Este torneio oferecia bons prêmios além de estada gratuita para os participantes, motivos mais que suficientes para atrair enxadristas do quilate de Paolo Bonno.
Paolo embarcou no galeão espanhol que estava ancorado no porto de Roma de nome Paloma del Mar. Já eram 20:00h quando o galeão finalmente partiu. Após três horas de uma tranqüila viagem Paolo recolheu-se a sua cabine.
O galeão em que Paolo Bonno viajava não era apenas um navio de passageiros, mas também de transporte de valores. Possuía cinqüenta canhões de grosso calibre prontos para receber piratas de qualquer nacionalidade que tivessem a ousadia de enfrentá-lo.
Além dos tripulantes do galeão havia cerca de trinta passageiros sendo que quatro deles de grande importância: uma princesa austríaca muito bonita por sinal com suas vinte e cinco primaveras de vida, um rico comerciante genovês, um príncipe prussiano com apenas vinte anos de idade e Paolo Bonno, famoso campeão italiano de xadrez de renome internacional.
Faltavam poucas horas para o galeão aportar em seu destino, quando de repente o homem do cesto da gávea do Paloma del Mar gritou: Piratas! Piratas à vista!
O timoneiro mandou o grumete acordar imediatamente o capitão, Marcello del Toro, que dormia profundamente. Depois de dois minutos de muita gritaria e confusão todo mundo acordara. Alguns rezavam pedindo proteção a Deus contra os piratas, outros sorriam e agradeciam pela oportunidade de poder enfrentá-los e uns poucos se escondiam do que estava por vir. A maioria porém preparava-se para o inevitável conflito que rapidamente se aproximava.
O capitão mandou seus homens para seus postos e olhando pela luneta calculava o tempo que ainda tinha de vantagem em relação ao Invencible o corsário pirata de Drake, Francis Drake. O navio do famigerado pirata possuía a proporção de 2:1 canhões em relação ao Paloma del Mar. O problema era que os homens de Drake além da vantagem no número de canhões também sabiam utilizá-los como ninguém, já que treinavam com uma freqüência absurda afundando os galeões após o saque.
Francis Drake era muito temido por ter o hábito de ser cruel com os sobreviventes de suas pilhagens. Ele costumava mandar os homens andarem numa prancha vendados e os atirava aos tubarões, um de cada vez, divertindo-se e a seus homens com este sádico espetáculo indicado apenas àqueles com estômago forte e coração de pedra. Com as sobreviventes mulheres era diferente. Ele simplesmente as usava como escravas sexuais e ai delas se se opusessem: eram imediatamente degoladas e atiradas ao mar para alimentar os peixes sem o mínimo remorso por parte dos piratas.
E finalmente o galeão espanhol foi alcançado pelo Invencible. O galeão espanhol carregava em segredo uma grande carga de ouro e prata sob responsabilidade do comerciante genovês. Na verdade só ele, o capitão do navio e os transportadores sabiam da preciosa carga do Paloma del Mar. Quer dizer só eles não: os piratas também sabiam! E sua perseguição incessante ao Paloma del Mar confirmava isso.
O primeiro tiro dos piratas foi um convite à rendição, pois passou pouco acima da cabeça do capitão. Porém o capitão e seus homens sabiam muito bem o que os piratas costumavam fazer com seus prisioneiros (eles sabiam por causa de um ex-pirata da tripulação de Drake que se cansando de tanta matança e depravação converteu-se ao cristianismo e revelou alguns dos segredos de seus ex-companheiros inclusive a perversidade de jogar todos os prisioneiros aos tubarões: um ato de puro sadismo e perversidade) e por isso lutariam até a morte, pois se fossem capturados morreriam do mesmo jeito.
O combate teve início. Os tripulantes do Paloma del Mar lutaram muito, mas diante da grande destreza dos piratas foram fragorosamente derrotados. O príncipe prussiano, o mercador genovês e quase todos os tripulantes morreram em combate.
Após carregarem o Invencible com a valiosa carga do navio saqueado e fazer o Paloma del Mar ir a pique com tiros certeiros de canhões, os piratas reuniram os poucos sobreviventes, na verdade apenas nove homens e três mulheres, e aguardaram as ordens do capitão que decidiria o que fazer com eles. As mulheres eram a princesa austríaca e suas lindas aias, ambas loiras e com rostos angelicais. Dentre os sobreviventes homens estava Paolo Bonno que era ótimo no xadrez, mas de uma covardia ímpar e só saíra de sua cabine por ter sido literalmente arrastado pelo descomunal pirata chamado Hammer, que por sinal adorava ver os prisioneiros sendo atirados aos tubarões, especialmente os covardes.
Já era de tarde quando Drake resolveu começar o sádico espetáculo. Ordenou que um de seus homens, o bigode, perfilasse os prisioneiros, que estavam com as mãos e pés atados, um pouco atrás da prancha erguida sobre o convés do Invencible em direção ao mar e pronta para seu sinistro propósito. O motivo de Hammer e muitos de seus companheiros gostarem tanto do “passeio” dos prisioneiros sobre a prancha era que havia poucas fontes de diversão para os piratas e o “passeio” era uma diversão que os alegrava na razão proporcional de sua maldade e perversidade, ou seja 100%
O “show” ia começar.
O primeiro homem, o capitão do Paloma del Mar, foi vendado e antes de ser atirado aos tubarões, atraídos pelos generosos pedaços de carne ensangüentada jogados por Hammer, xingou os piratas com palavras de baixo calão e sem esperar que o pirata o jogasse, ele mesmo se atirou da prancha em direção a seu triste destino.
Drake já estava tão acostumado com o espetáculo que para ele aquilo era como beber água, mas seus comandados, ao contrário de seu capitão, deliciavam-se com o desespero dos prisioneiros diante da morte. O desespero dos prisioneiros para os piratas era um verdadeiro estimulante, uma “droga” tal qual a cocaína que os deixava em estado de êxtase e prontos para realizar novos saques que por sua vez proporcionariam mais diversão e prazer na forma de um novo espetáculo com diferentes personagens e distintas reações diante da morte iminente.
Um após outro os prisioneiros foram sendo jogados aos tubarões. Quando porém chegou a vez de Paolo Bonno, por sinal o último da funesta fila, este começou a chorar compulsivamente e gritando dizia que seria mais útil aos piratas vivo do que morto. Drake, ironicamente, perguntou que tipo de serventia teria um covarde como ele. Todos os piratas riram ruidosamente do sarcasmo de seu capitão.
Paolo Bonno então disse que era campeão de xadrez da Itália e que se Drake poupasse sua vida seria regiamente recompensado, pois ele era conde em Nápoles e muito rico e jogava xadrez não como meio de vida, mas por pura diversão e muita avareza.
Drake não acreditou muito na história de Paolo e mandou que Hammer o atirasse aos tubarões. Paolo Bonno chorando muito disse a Drake que venceria sem a Dama (Rainha) qualquer um dos piratas que jogasse contra ele e que Drake não tinha nada a perder, pois se ele perdesse a partida morreria devorado pelos tubarões como os piratas queriam e se ganhasse proporcionaria uma partida de linda beleza enxadrística além de pagar uma boa soma em dinheiro a Drake e seus piratas.
Drake que era fascinado por xadrez, apesar de ser um jogador medíocre, apreciava a beleza de partidas bem jogadas e caso o italiano covarde estivesse falando a verdade teria a oportunidade de ver uma partida de rara beleza. Diante disso Drake que adorava um desafio, concordou com a oferta de Paolo, apalpando suavemente os quadris da princesa austríaca, que estava na sua frente em companhia de suas inseparáveis aias que assustadas assistiam ao sinistro espetáculo.
Francis Drake chamou seu imediato, que era o melhor jogador de xadrez que já vira jogar e o ordenou que jogasse com Paolo. E a partida então começou. George, o imediato, diante da vantagem de uma Dama (uma grande vantagem material) decidiu jogar de negras, para o jogo ficar mais disputado e mais agradável aos olhos da platéia e de seu capitão.
George não acreditava nem um pouco na história contada pelo prisioneiro, na verdade achava que tudo que ele dissera fora um blefe para ganhar tempo e tentar uma fuga e George tinha plena certeza que sua vitória o desmascararia selando sua triste sina.
George olhava para os olhos de Paolo Bonno e não disfarçava um riso debochado e malévolo.
Paolo impassível fazia seus lances. Hammer não via a hora da partida acabar para reiniciar o sádico espetáculo. Ria que nem um gato que viu um rato gordo.
Drake acompanhava a partida com vívido interesse, pois não era todo dia que seu Invencible recebia um campeão.
O sorriso de George e de toda a tripulação sumiu após uma bela combinação, muito bem calculada por Paolo Bonno, que reduziu sua desvantagem de uma Dama para apenas um Bispo ou em outras palavras George acabara de perder sua Dama, apesar de manter a vantagem de um Bispo.
George já não sorria mais e quando Paolo Bonno deu-lhe xeque-mate seu rosto contorceu-se num esgar de surpresa e de raiva.
Hammer após a vitória de Paolo deu um chute tão forte no barril de vinho que se encontrava a sua frente que quebrou o pé.
Drake fiel a sua palavra e contente por ter visto um jogo de altíssimo nível técnico e de beleza ímpar, concedeu a liberdade a Paolo Bonno sem nenhuma contrapartida. (Ele dispensou o pagamento de resgate)
O jogo disputado por Paolo Bonno a bordo do Invencible não fora mais um jogo na sua vida, mas “o jogo” de sua vida, pois se ele ainda estava vivo deveria agradecer a Deus pelo fato de um sangüinário e sádico pirata ser um fã tão ardorosamente apaixonado por xadrez a ponto de ir de encontro com seus companheiros e interromper uma das diversões mais apreciadas pelos cruéis, terríveis e sádicos piratas do Invencible.
E a princesa austríaca? Bem ela se tornou mulher de Francis Drake. Suas belas aias seguiram o mesmo caminho e também se tornaram mulheres de piratas mais precisamente de Hammer e de George, o imediato, e vivem felizes com seus maridos e com seus “piratinhas” numa ignorada ilha no Oceano Atlântico onde a “família pirata” de Francis Drake se esconde da lei e da ordem tradicionais até a presente data.

Londres, 15 de março de 1666

Um outro ex-pirata convertido ao cristianismo.

Marion de Gascoine


FIM

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